Por Marquelino Santana
Foi através da fronteira do humano onde o seringueiro adentrou na floresta para construir o seu lugar. No seringal ele construiu no espaço e tempo a sua peculiar e tradicional identidade cultural seringueira. A exuberante paisagem natural amazônica foi cotidianamente sendo lapidada pela inserção da mão seringueira que a transformou numa paisagem cultural enfeitada com seus tapiris, suas estradas de seringa e seus utensílios de trabalho como relevantes marcas estabelecidas na colocação: o seu lugar.
Para Eric Dardel a paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, tornou-se fruto da manifestação de seu ser. Segundo o referido autor, é desse lugar, base de nossa existência, que, despertando, tomamos consciência do mundo e saímos ao seu encontro.
Foi nas atividades cotidianas da mata que o ribeirinho construiu e sentiu ontologicamente que a sua casa e os seus utensílios de sobrevivência tornaram-se fenômenos que também faziam parte do seu próprio imbricamento humano. Em seus estudos heideggeriano, Lígia Saramago nos diz que é a fenomenologia do utensílio, que constitui uma das mais comentadas temáticas de Ser e Tempo e que traz em suas linhas uma expressiva reflexão sobre o lugar como espaço vivido.
Se espacialidade e territorialidade são indissociáveis da ação humana ribeirinha, a vivência é fruto da experiência desse espaço vivido. Pois de acordo com Yi-fu Tuan, o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado.
As populações tradicionais impregnam-se no seu espaço de ação e temporalidades, para incorporarem o pertencimento de lugar, e este pertencer fica imbricado à sua identidade ribeirinha. Para Tuan uma identidade de lugar se alcança pela dramatização das aspirações, necessidades e ritmos funcionais da vida pessoal e dos grupos.
Segundo aponta Edward Relph, geógrafo e professor da Universidade de Toronto, Lugar não é meramente aquilo que possui raízes, conhecer e ser conhecido no bairro e não é apenas a distinção e a apreciação de fragmentos da geografia. Para o autor, o núcleo de significado de lugar se estende, segundo ele, em suas ligações inextricáveis com o ser e com a própria existência.
Para Edward, lugar é um microcosmo, é onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco, pois o lugar é parte de um processo em que o mundo inteiro está de alguma forma implicado, e isso, é existencial e ontológico, enquanto que para o geógrafo Eduardo Marandola, estar no mundo fenomênico ontológico é, nessa perspectiva, uma imersão completa que coloca no centro, um ser num mundo circunscrito e circundado pelas coisas e pelos homens, circunstanciado no tempo e no espaço.
As coletividades tradicionais ribeirinhas amazônicas, carregam seculares modos de vida que foram nesse espaço e tempo, incorporadas ao seu ser, sendo desta forma, metamorfoseadas em imensuráveis experiências que vivificaram a alma e o sentimento ontológico do lugar.
No estudo intitulado “O sentido de lugar”, Lívia Oliveira nos informa que o lugar na geografia, desde o início da geografia humanista, foi sempre a essência propriamente dita da ciência geográfica, e que refletir sobre o lugar é refletir de certa forma sobre o sentido da geografia. Segundo a mesma autora, é o lugar experienciado como aconchego que levamos dentro de nós, isto é, o lugar consciente do tempo social histórico, recorrente e mutável, no transcorrer das horas do tempo em um espaço sentido dentro de um lugar exterior ou interior.
Lígia Saramago no estudo denominado “Como ponta de lança” – O pensamento do lugar em Heidegger – nos diz que uma das primeiras associações que podemos então estabelecer no contexto do pensamento heideggeriano sobre o lugar é sua indissolúvel vinculação com a ideia de significatividade, que pode ser também compreendida como abertura de sentido das coisas. Desta forma a citada a autora nos esclarece que, o que imediatamente se mostra como fundamental nesta passagem é a importância decisiva atribuída à relação entre ser e estar em seu lugar, uma relação de um autêntico e essencial pertencimento ao lugar.
O pertencimento de lugar do tradicional povo ribeirinho, está principalmente, incorporado na vivacidade das águas e da floresta. Um lugar de apego, e de onde eles arrancam o sustento da família. Nesse sentido, concordamos com Werther Holzer ao dizer que o lugar é o aporte fenomenológico apropriado pelos geógrafos humanistas, ou seja, segundo ele, lugar é o que trata da experiência intersubjetiva de espaço e mundo em seus fundamentos, quais sejam, distância e direções a serem vencidas, fisicamente ou na imaginação, sobre um determinado suporte que ele o chamar de “espaço geográfico”, constituindo-se a partir das vivências cotidianas como um centro de significados, como um intervalo, onde se experimenta intensamente o que pode ser denominado de geograficidade.
A relação existente entre o ribeirinho e a mata é uma demonstração secular de que é possível viver sem destruir ou matar. O entrelaçamento entre o homem e a terra que era para ser de uma comunhão ao bem viver, transformou-se numa marcha fúnebre hostil e odiosa, levando espaço e mundo a um verdadeiro infortúnio e a extinção do lugar. Ainda sobre a geograficidade, Werther Holzer nos informa que a geograficidade trata do conteúdo existencial do homem com o espaço terrestre e, na medida em que o homem se apropria desse espaço, ele se torna mundo, a partir da fixação das distâncias e das direções, onde os marcos referenciais são o corpo e a matéria onde ele se apoia, um espaço primitivo que, uma vez apropriado pelo homem, se torna lugar.
O lugar como fruto da ação do homem na terra de forma consciente e humanizada, nos levou a crer que esta relação existencial poderia sobreviver de forma douradora como fora historicamente comprovada entre o ribeirinho e o seu espaço de ação, inclusive com a preservação de seus artesanais instrumentos de trabalho continuando sendo úteis a vida, mas a ascensão triunfante e avassaladora da tecnologia reinante nos mostrou ao contrário. Conforme nos relata Lígia Saramago, a ocupação humana do trabalho leva, portanto, às configurações de regiões e lugares do entorno do mundo, bem como à sua rede de encontro, basicamente ao tornar presentes para nós aquilo que está ao alcance direto das mãos: as coisas, instrumentos e utensílios que nos cercam cotidianamente.
Algumas coletividades originárias e tradicionais da Amazônia continuam resistindo aos impactos degradantes do mundo globalizado. Mas essas singularidades e pluralidades sócio – linguísticas – culturais, emergidas do ser do homem ribeirinho, continuam também tendo as suas relações com a natureza cruelmente dilaceradas. A sociedade envolvente continua sendo depreciadora da cultura através de concepções reacionárias estigmatizadoras, a linguagem popular de súplicas continua sofrendo estereótipos, e os saberes e fazeres tradicionais continuam sendo afugentados. Se as novas gerações não estancarem o ecocídio, certamente, as futuras gerações não lembrarão do sentimento ontológico do lugar ribeirinho.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.