Autor: Marquelino Santana
Às margens de um caudaloso rio amazônico, uma família de pescadores procura sair do infortúnio e ir de encontro ao um lugar onde pudesse se deparar com a comiseração, compaixão e piedade. O pescador atraca o seu barco no Porto Abunawaka, coloca os poucos pertences num saco de encauchado e caminha em estado esmaecido por um antigo varadouro de seringa em busca de um vilarejo onde pudesse trabalhar e tratar da saúde familiar visivelmente debilitada.
Mais adiante – e exausta face a árdua caminhada iniciada numa madrugada fria – a família finalmente chega ao anoitecer num pequeno vilarejo denominado Nova Jerusalém. No vilarejo encontra guarida num antigo tapiri, onde posteriormente conheceu um velho seringueiro que tratou da saúde da família à base de ervas medicinais que o mesmo cultivava no quintal de casa. Juntamente com esse seringueiro, a família de pescadores, em regime de mutirão, dera início à construção do primeiro posto de saúde daquela comunidade.
No espaço e tempo, a família foi construindo o dadivoso pertencimento de lugar, e num futuro próximo, a felicidade aumenta, quando esta tem a oportunidade de matricular o filho único para estudar numa escolinha de madeira, coberta de palha e com assoalho de paxiúba.
Pouco tempo depois a escolinha em forma de tapiri adquire um novo formato: seis salas de aula em alvenaria, dois banheiros e uma cozinha; o suficiente para que aquelas crianças pudessem ter um dia, o direito de sonhar com um futuro melhor.
Mas o amor pela escola e a generosidade do lugar, esbarra de forma delituosa na delinquência de um passageiro da rua. Na devassidão da alma, esse homem atrai a criança com algumas guloseimas, durante o trajeto da saída da escola até o caminho de casa, e a conduz à tenebrosidade de um casebre abandonado.
Na insolência de um engodo esdrúxulo, o passageiro da estúrdia ceifa cruelmente a vida e os sonhos da criança em agonia. A vivacidade e exuberância do lar sagrado são extirpadas pela execração humana, enquanto a comunidade em comoção corre em busca de encontrar o corpo da criança.
O corpo do pequeno estudante fora encontrado no fundo de um poço do casebre abandonado. A família enlutada perde as forças diante de um crime cruel e horripilante, enquanto isso, os membros da comunidade se unem na perseguição do delinquente.
O passageiro do crime é encontrado e levado a uma pequena cadeia do vilarejo, mas a comunidade revoltada não se contenta, invade a cadeia, e em seguida arranca a grade de ferro, arrasta o detento até a rua e o apedrejam até a morte.
No impropério do mundo, o céu escuro e inóspito, mais parece um lugar insurgente e insidioso diante de tanta malevolência terrena. Mas o céu lutulento no seu gemido profundo, repentinamente se transforma em algo inefável da vida sobrenatural, e um raio violento rasga as nuvens arroxeadas, provocando um intenso luzeiro, e anunciando a ressureição do pequeno inocente que teve a sua vida exacerbadamente ceifada.
No imaginário mundo da imaterialidade da alma, o universo renasce fabuloso, enquanto uma chama falárica metamorfoseia-se num harmonioso anjo ornado de flores. O anjo em seu deslumbrante esplendor, realiza um voo divinal sobre o vilarejo Nova Jerusalém, e de forma colossal abre as suas asas sobre o passageiro da morte.
O passageiro ecoa o seu último gemido como que implorando perdão ao anjo, e o anjo na sua benevolência espiritual, o perdoa através de uma inocente lágrima que desliza vagarosamente sobre o seu rosto e cai com destino a terra mãe.
A imaculada lágrima no seu estetizante trajeto bate silenciosamente sobre o coração do passageiro do crime, e este por sua vez, dar o seu último suspiro de vida e se transforma num vulto escuro assustador e demoníaco. O vulto apresenta-se em forma de assombração e tormento, ao tempo em que é devorado e elevado ao alto suplício por milhares de monstros perniciosos em formato de camirangas gigantes.
Através do amor, a alma benevolente sempre vence o espírito pugnaz e belicoso. A alma virtuosa e prodigiosa com as suas asas complacentes é a mais divinal transportadora de paz entre o céu e a terra.
A alma generosa abençoou a sua escolinha, que continua ensinando e aprendendo os valores éticos e morais, abençoou o seu lar, que continua criando com amor os seus entes queridos, e abençoou a sua comunidade, que continua amando eternamente o anjo da vila litigante.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.