Autor: Marquelino Santana
A brasiviana Francisca Sampaio, mais conhecida por “Dona Nete” entre amigos e parentes, tornou-se símbolo de resistência numa fronteira binacional. O rio Mamu era a sua fortaleza e o lugar que na sua espacialidade representava os seus modos de vida, adquiridos desde o advento do primeiro surto da borracha na Amazônia.
Com a invasão dos campesinos à sua casa nos seringais bolivianos do Departamento de Pando durante o governo Evo Morales, Francisca se encontrava apenas com seus filhos, pois o esposo tinha ido ao distrito de Extrema comprar remédios, naquele trágico momento, Francisca, viu o seu mundo começar a desmoronar.
Coma chegada do esposo, A família deixa os seringais do Mamu, entra no rio Abunã, até chegar pesarosamente ao Porto Extrema. A sua nova casa, foi o próprio batelão, onde ficaram alojados por muito tempo, até que conseguissem trabalhar, juntar um dinheiro, e ir comprando o material para a construção de uma nova morada.
Vendo a situação em que se encontrava a família, um empresário da região, disponibilizou um pedaço de terra na fundiária de sua fazenda para que a família iniciasse a construção da casa, localizada às margens do rio Abunã no Porto Extrema.
A luta estava apenas começando, a casa de Francisca, tornou-se o ponto de apoio de todas as famílias brasivianas que iam sendo expulsas de seus seringais. Ela sempre atendeu a todos, enquanto crescia o movimento de conquista por um novo assentamento em território brasileiro.
Francisca tinha muitos sonhos, mas a próxima meta, era conseguir a construção de um mastro da bandeira nacional no rio Abunã, ao lado de sua casa. Ela sempre dizia que não tinha raiva de ninguém, nem qualquer outro povo, apenas queria que o seu país fosse respeitado, assim como ela respeitava o país dos outros.
A brasiviana consegue montar uma parceria com o Projeto ética e cidadania da Escola Jayme Peixoto de Alencar do distrito de Extrema, e com o 3º Pelotão de Fronteira do Exército Brasileiro – 3º PEF, localizado no Município acreano de Plácido de Castro, e que era o batalhão responsável pela segura naquela área de fronteira.
A luta de Francisca chamou a atenção das autoridades nacionais, que passou a acompanhar o seu trabalho no sentido de sensibilizar as autoridades pela busca de um pedaço de terra para cada família brasiviana que forram expulsas de seus seringais.
Francisca, enfim, conseguiu realizar mais um sonho, que era o de ter um mastro da bandeira nacional brasileira, construída às margens do rio Abunã, inaugurado pelo Exército Brasileiro no ano de 2012. Na oportunidade, Francisca foi condecorada pelo 3º Pelotão Especial de Fronteira – 3º PEF, do Município de Plácido de Castro, recebendo o título de “Sentinela do Abunã”.
Francisca lutou incansavelmente na conquista de seus direitos humanos, e em nenhum momento rendeu-se à xenofobia fronteiriça. Ela foi forçada a deixar seu lugar, foi forçada a deixar os seus modos de vida e foi forçada a deixar as águas do rio Mamu, mas não se separou de tudo das águas, ela ficou juntamente com sua família, morando às margens do rio Abunã.
Ela continuou lutando no sentido de conseguir seu pedaço de terra, e a sua casa tornou-se um ponto de encontro de todos os seringueiros que foram expulsos da floresta pandina. Vários protestos foram realizados às margens do rio Abunã, e a sua casa acolheu a todos naquele momento de agonia e humilhação.
Francisca continuou lutando, e no ano seguinte ela conseguiu junto a Eletrobrás que a rede de energia elétrica chegasse até às margens do rio Abunã, onde a sua casa estava localizada. Enquanto isso, outra conquista sua para que os seus filhos pudessem estudar, e as demais crianças que moravam no ramal da linha dois, foi a implantação do transporte escolar rural.
A brasiviana jamais se rendeu a qualquer ato de desumanidade que viesse impedi-la de lutar pela sua família, e pelas famílias daqueles que passaram também pela mesma agonia que ela passou. Francisca nunca se acomodou e nunca perdeu o brilho da sua humildade, ela continuou lutando, resistindo e superando as truculências que o mundo malevolente oferece a existência do ser.
A mulher brasiviana como símbolo de resistência, agora como todos os brasivianos, ela queria um pedaço de terra para plantar e colher. Uma terra para cuidar, viver e ir se adequando à novos modos de vida, diferente dos seringais, onde viveu a sua vida inteira.
Mas essa conquista seria árdua, muitos brasivianos diante da morosidade do governo federal e da Organização Internacional para Migrações (OIM) – um organismo da ONU – não suportaram a demora e partiram em busca da sobrevivência em outras localidades, enquanto outros foram chamados à residirem em outra dimensão da vida. Cansados de esperar, os brasivianos se reúnem na casa de Dona Francisca e dão um ultimato às autoridades brasileiras e internacionais. O ano de 2012 foi marcado por vários protestos e reuniões diplomáticas. Como se não bastasse, ao lado de sua casa, um oficial da Força Naval Boliviana, atraca a voadeira às margens do Porto Extrema, e fardado invade o território brasileiro para tomar satisfações com os seringueiros brasivianos.
A truculência e abuso do oficial, fez com que os brasivianos retessem o Tenente Juan Pacheco, e o mantivessem no território brasileiro até que as autoridades federais aparecessem para solucionar a questão. Com a intervenção da Polícia Militar no caso e a transferência do oficial para o comando naval de Guayaramerim no Departamento de Beni, mais uma vez, os brasivianos se reúnem na casa de Dona Francisca, para juntos, buscarem uma solução em busca da terra prometida. Foi quando eles decidiram fechar o Porto Extrema, e impedir a passagem de qualquer boliviano que por ventura insistissem em atravessar o porto com as suas embarcações.
E assim o fizeram, foi preciso que os coordenadores do Projeto ética e cidadania mantivessem contato com a Embaixada Brasileira de La Paz, e conseguissem uma data de confirmação para que um diplomata viesse conversar com eles, e se comprometesse com propostas concretas para que eles pudessem ser definitivamente assentados em território brasileiro.
A Embaixada se pronunciou, e marcou uma data para comparecer no distrito de Extrema e mais uma vez conversar com os seringueiros brasivianos. Somente assim, eles decidiram reabrir o Porto Extrema. Na presença das autoridades da Embaixada Brasileira de La Paz e da Polícia Federal, e de membros do Projeto ética e cidadania, Francisca explica sobre a situação de penúria que muitos brasivianos estavam vivendo, e solicita das autoridades, urgência no assentamento, para evitar que problemas mais graves pudessem acontecer naquela área fronteiriça.
Depois de muita espera, finalmente, os brasivianos foram reterritorializados em assentamentos nos Estados do Acre e Rondônia. Dona Francisca, e família foram assentados numa área localizada no município de Bujari no Estado do Acre.
Certamente, Francisca não tem como esquecer um lugar que marcou profundamente a sua vida, e a vida de todas as famílias brasivianas do rio Mamu. Francisca é mais do que a sentinela do Abunã, Francisca é a mulher brasiviana como símbolo de resistência.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.