Por Marquelino Santana
O recém-nascido ficara sem o seu leite sagrado, enquanto a matéria da mãe é devorada dentro da cova. A sociedade ficou responsável por traçar o inóspito destino do mais novo menino de rua: sem lar, sem pão e sem nada.
Morando de vila em vila, vagando de lar em lar, escorraçado de teto a teto e batendo de porta em porta, o herdeiro do feminicídio não conseguiu juntar os últimos pedaços de músculos grudados entre o couro e os ossos: um pai assassino – morto e esmagado numa derrubada por uma árvore centenária, enquanto trabalhava numa área de desmatamento – e os dois irmãos mais velhos, executados numa área de conflito que envolvia a luta pela terra entre posseiros e grileiros, e que logo em seguida tiveram os seus corpos desaparecidos.
A única honraria que lhe coube na sociedade foi ter o direito de poder entrar na morada dos mortos e visitar o lugar sagrado onde a sua mãe estava descansando há exatamente 12 anos: a cova sem cruz do cemitério da impunidade.
Numa noite macabra na vila dos injustiçados, os moradores ouviram um tremendo tiroteio, misturado a um grito solitário de misericórdia: a vila dos “justiceiros” tinham ceifado a vida do herdeiro do feminicídio.
Os “justiceiros” matam crianças às escondidas, enquanto as suas crianças não escondidas serão médicas, professoras, promotoras e outras grandes profissionais, diferente da criança herdeira do feminicídio que teve a sua vida escondida para sempre.
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Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/UNIR e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina – UEL.