Os números do último Anuário de Segurança Pública, divulgados em julho de 2025, expõem um contraste doloroso no cenário da violência doméstica no Brasil. Enquanto a quantidade de crimes continua a crescer, o país celebra os 19 anos de uma legislação considerada exemplar para coibir e prevenir esses atos: a Lei Maria da Penha.
Tirar a lei do papel é o grande desafio. Pesquisadoras ouvidas pela Agência Brasil, como Isabella Matosinhos e Amanda Lagreca, destacam a necessidade urgente de políticas públicas eficazes. Elas reforçam que a efetividade da legislação depende de ações integradas, que vão além das medidas protetivas e incluem um sistema robusto de assistência para as mulheres.
O panorama da violência e as medidas protetivas
O cenário atual é alarmante. A cada dia, ocorrem quatro feminicídios e mais de dez tentativas de assassinato. Em 80% dos casos, o agressor é o companheiro ou ex-parceiro da vítima. Um dado particularmente preocupante é que 121 mortes nos últimos dois anos aconteceram com a vítima sob medida protetiva de urgência.
As medidas protetivas, apesar de serem um avanço da Lei Maria da Penha, não se mostram suficientes por si só. Isabella Matosinhos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que o foco deve estar nos casos em que essas medidas são ineficazes. Do total de 555 mil medidas concedidas no ano passado, pelo menos 101.656 foram descumpridas.
A especialista explica que a lei sozinha não consegue mudar esse cenário. O atendimento em rede, previsto na legislação, garantiria o acolhimento da mulher por diversos setores, como saúde, assistência social e segurança pública. No entanto, segundo Isabella, é muito difícil que essa integração de redes funcione de maneira adequada.
A necessidade de atuação integrada
Amanda Lagreca, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), reforça que as políticas públicas precisam considerar a complexidade da realidade das mulheres brasileiras. Para ela, é essencial que as instituições implementem a lei de fato, e que o poder público atue em conjunto.
As pesquisadoras notam que a atuação em rede funciona melhor nas capitais, mas enfrenta grandes desafios no interior do país. Para que a rede se sustente, é preciso investimento dos estados e municípios.
A violência atinge mulheres de todas as classes sociais, mas o anuário de segurança mostra que 63,6% das vítimas são mulheres negras e 70,5% têm entre 18 e 44 anos. Isabella Matosinhos ressalta que essas mulheres, jovens e negras, são as principais vítimas da violência letal.
Luta por mudança cultural e conscientização
Além das políticas públicas, a mudança de consciência é vista como um ponto crucial pelas especialistas. A Lei Maria da Penha promove uma visão de prevenção completa, com medidas que podem incluir a participação do agressor em grupos reflexivos. Amanda Lagreca argumenta que, embora o aumento de penas seja uma tendência, o avanço real virá com a educação em escolas e outros ambientes, ensinando que a violência contra a mulher não é tolerada.
A pesquisadora reconhece o papel fundamental da lei, que surgiu da luta da sociedade civil e foi reconhecida pela ONU como um dos modelos mais importantes no combate à violência de gênero. A atualização da lei, que agora inclui a violência psicológica como forma de agressão, representa um avanço significativo nesse sentido.
Para solicitar uma medida protetiva, é necessário um histórico de violência. Por isso, a prevenção das primeiras agressões depende de uma transformação cultural profunda. Amanda Lagreca conclui que o agravamento da violência de gênero é um dos maiores gargalos da democracia brasileira, e a Lei Maria da Penha continuará sendo um instrumento vital nessa luta.