BRASÍLIA – No Brasil, a carga tributária recai desproporcionalmente sobre a população mais pobre, com um impacto ainda mais severo sobre as mulheres negras. Esse cenário reforça injustiças sociais e foi tema de debate no Festival Latinidades, em Brasília. As pesquisadoras Eliane Barbosa e Roseli Bezerra destacaram a urgência de uma reforma tributária que considere a capacidade econômica de cada cidadão e promova a equidade.
A distorção tributária e seu impacto nas mulheres negras
A ideia de justiça fiscal, prevista no Art. 145, §1º da Constituição, estabelece que os impostos devem ser graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte. No entanto, dados revelam uma grande distorção: os 10% mais pobres do país comprometem cerca de 30% da renda com impostos sobre o consumo, enquanto os 10% mais ricos destinam apenas 10% de sua renda a esses mesmos tributos. Isso significa que quem tem menos paga proporcionalmente mais.
A professora e pesquisadora Eliane Barbosa, da Agência Brasil, enfatiza que essa desigualdade no sistema tributário brasileiro aprofunda injustiças históricas e sociais, atingindo de forma mais dura as mulheres negras. Muitas delas são as principais provedoras de suas famílias, acumulando funções e despesas que frequentemente excedem sua renda formal. “Para algumas mulheres negras, o salário não é apenas o que recebem — é o que garante a sobrevivência de toda a família. Por isso, o mesmo valor tem um peso e um impacto muito diferentes”, explica Eliane.
Propostas para uma reforma tributária justa
Eliane Barbosa defende que a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, embora necessária, ainda é insuficiente. Ela propõe uma reestruturação tributária mais ampla, que vá além da renda declarada e considere o acúmulo histórico de privilégios, as desigualdades raciais e de origem, e a realidade concreta da vida de cada contribuinte. “O sistema tributário brasileiro precisa cumprir o que está na Constituição: sempre que possível, os impostos devem ter caráter pessoal e ser graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte. Isso não é um favor, é um dever do Estado”, afirma a pesquisadora.
A justiça fiscal, segundo Eliane, é uma ferramenta poderosa para a transformação social. Políticas de tributação mais progressiva, que cobram mais de quem tem mais, podem gerar recursos para financiar áreas essenciais como saúde, educação, infraestrutura e programas de combate à pobreza. “Se queremos um país mais justo, precisamos de um modelo tributário que distribua o peso com mais equidade. Mulheres negras, historicamente excluídas das oportunidades, não podem continuar sendo as mais penalizadas por um sistema que não reconhece sua realidade”, conclui.
Isenções fiscais e a exclusão das mulheres negras
A socióloga e pesquisadora Roseli Bezerra também destaca os desequilíbrios na arrecadação de tributos, especialmente nos municípios. Ela critica a estrutura tributária brasileira por aprofundar injustiças históricas ao conceder isenções fiscais bilionárias a grandes empresas, como as do setor mineral, enquanto os tributos sobre o consumo penalizam as pessoas de menor renda. “Enquanto essas corporações desfrutam de isenções significativas, vemos mulheres negras vivendo abaixo da linha da pobreza, com renda insuficiente até para garantir o básico. Isso é uma violência fiscal, é a negação sistemática de direitos”, aponta Roseli.
Roseli Bezerra ressalta que a arrecadação de impostos muitas vezes não se traduz em retorno social para quem mais precisa, como acesso digno à saúde, educação ou segurança alimentar. Ela exemplifica com estados da Amazônia Legal, onde a riqueza extraída da mineração contrasta com a ausência de políticas públicas eficazes nas comunidades locais. A pesquisadora enfatiza que o debate sobre justiça tributária é indissociável das discussões sobre raça, gênero e território. “Em um país tão desigual como o Brasil, discutir tributos sem tocar nas isenções bilionárias concedidas às elites econômicas é ignorar o pacto perverso que sustenta a pobreza das mulheres negras”, finaliza.
Debate no Festival Latinidades
O tema “Justiça Fiscal e Reparação para Mulheres Negras” foi um dos destaques do Festival Latinidades, realizado no Museu Nacional, em Brasília. Além de Eliane Barbosa e Roseli Bezerra, o encontro contou com a participação da antropóloga Carmela Zigone e da jornalista Andressa Franco. O Festival Latinidades segue com sua programação de debates, artes plásticas, feira e shows até sábado.