Porto Velho (RO) – Um vídeo em que uma mãe clama por tratamento para a filha, com sintomas graves do Transtorno do Espectro Autista (TEA), ganhou repercussão nas redes sociais e gerou mobilização pública. Centenas de pessoas reagiram ao vídeo, marcando órgãos dos poderes públicos e autoridades políticas. “Por favor, ajude minha filha a ter sua dignidade e qualidade de vida restituídas”, escreveu a mãe na legenda. Vários deputados estaduais e uma deputada federal já se manifestaram, e associações e movimentos de mães atípicas se uniram em apoio.
A mãe é Eliane Guatel, conhecida em Porto Velho como coordenadora da Rede de Mães Atípicas Empreendedoras. Ela superou a depressão por meio do empreendedorismo e agora luta pelo tratamento da filha de 13 anos, que necessita de atendimento especializado e urgente — inexistente no estado —, adequado ao seu quadro grave, para poder voltar a viver em sociedade. A adolescente também apresenta comportamentos obsessivo-compulsivos e possui diagnóstico coexistente de Transtorno Opositivo Desafiador (TOD).
A jovem era aluna da Escola de Educação Especial Abnael Machado – CENE, da rede pública estadual, mas está fora da sala de aula desde maio de 2024, quando agrediu uma professora. A profissional registrou a ocorrência em uma delegacia especializada em atos infracionais cometidos por menores em conflito com a lei. O caso foi encaminhado ao Tribunal de Justiça (TJ-RO). A adolescente, que não se comunica por fala e não tem compreensão da criminalização sofrida, foi defendida pela Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB de Rondônia. O caso foi arquivado no TJ.
Outra batalha
Após meses de trâmite judicial, a Justiça reconheceu o direito da filha de Eliane ao Tratamento Fora do Domicílio (TFD), na cidade de São José dos Campos (SP), em uma clínica referência no atendimento a pessoas autistas com comportamentos-problema severos, utilizando um protocolo de análise comportamental individualizada baseado na ciência ABA (Análise do Comportamento Aplicada). O tratamento de urgência foi indicado por um médico e uma analista do comportamento conceituados em Rondônia.
Em Porto Velho existem clínicas que trabalham com intervenções baseadas na ciência ABA, a qual possui princípios éticos rigorosos — especialmente em casos complexos. Um dos princípios éticos determina que, se o analista não puder oferecer atendimento seguro e eficaz, deve recusar o caso ou encaminhar para outro profissional mais qualificado, evitando riscos ao paciente e à família. Além disso, as clínicas locais estão estruturadas para atender crianças, e não adolescentes autistas no perfil da filha de Eliane.
Pedido rejeitado pelo Estado
A solicitação de TFD foi protocolada em 30 de setembro de 2024 e, em menos de 24 horas, foi negada administrativamente pelo Estado de Rondônia. Com base em pareceres médicos e laudos especializados, a família ajuizou ação no Tribunal de Justiça, com pedido de tutela de urgência. A adolescente segue acompanhada pela Comissão da OAB/RO que atua na defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
Apesar da urgência clínica, a liminar foi indeferida. Mesmo após sentença favorável à família, o Estado recorreu duas vezes, enquanto a adolescente segue sem tratamento, sem estudar, sem terapias e em situação de isolamento social.
Três agendamentos foram feitos para início do tratamento em São Paulo, mas os embargos do Estado impedem que a jovem acesse o tratamento de que necessita com urgência.
Manifestação do Ministério Público
Em manifestação datada de 22 de janeiro de 2025, o Ministério Público de Rondônia, por meio da 13ª Promotoria de Justiça de Porto Velho/Curadoria da Saúde, reforçou a urgência do caso e a obrigação do Estado de garantir o tratamento solicitado.
O documento destaca os direitos constitucionais à saúde e à dignidade, mencionando os artigos 6º e 196 da Constituição Federal, bem como a Lei Orgânica da Saúde (nº 8.080/1990) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (nº 8.069/90).
A promotoria ressaltou:
“Estamos tratando de uma CRIANÇA/ADOLESCENTE e, segundo a Constituição Federal, há prevalência de determinados direitos fundamentais, dentre os quais o direito à vida e à saúde.”
O Ministério Público se posicionou favoravelmente à procedência do pedido, reconhecendo a ausência de serviços especializados no estado e a urgência de garantir o melhor tratamento à paciente.
Direito constitucional à saúde
Na decisão emitida em 4 de fevereiro de 2025, a juíza Kerley Regina Ferreira de Arruda julgou procedente o pedido da família, determinando que o Estado de Rondônia arque com todas as despesas do tratamento, incluindo hospedagem, locomoção e alimentação.
A sentença afirma que o direito à saúde, previsto nos artigos 6º e 196 da Constituição, é um dever inegociável do Estado. A juíza rejeitou a tentativa do governo de transferir a responsabilidade ao Município de Porto Velho e reafirmou a obrigação direta do Estado em fornecer o serviço solicitado.
Mesmo após a sentença favorável à família, proferida por uma juíza de primeira instância, o Estado de Rondônia recorreu da decisão, utilizando mais um recurso para tentar se eximir da obrigação de custear o tratamento. Com isso, o processo seguiu para a segunda instância do Judiciário estadual.
Fica evidente a insensibilidade do Estado, que nega o tratamento e, ao mesmo tempo, cobra responsabilidades das famílias por meio de órgãos fiscalizadores, como o Conselho Tutelar. Enquanto isso, a adolescente autista segue em isolamento social, sem a assistência que precisa.