O título desta análise de um reconhecido DCnauta pode até parecer ufanista, mas permitam-me discorrer brevemente para que, talvez, eu consiga explicar tamanho atrevimento.
Essa obra cinematográfica, que logo que foi anunciada, ainda em 2018, causou certa estranheza e olhares desconfiados tanto para os amantes da DC e até mesmo para os ‘contrários’ da Marvel, tinha tudo para ser um daqueles filmes que ninguém queria (ou pretendia) assistir, já que se trataria de um ‘estória’ de origem, com baixíssimo orçamento (se comparado aos blockbuster’s que tomam conta das telonas atualmente), que trazia Todd Phillips no comando (um reconhecido diretor de comédias), e principalmente depois do constrangedor personagem do Coringa vivido por Jared Leto no ainda mais desnecessário “Esquadrão Suicida” (2016).
E, se formos comparar com o também filme de origem da “Mulher Maravilha” (2017), que obteve uma forte aprovação do público e da crítica, a sensação de que teríamos mais uma ‘bomba’ completamente dispensável era ainda mais evidente, pois não bastasse o fiasco de “Batman VS Superman – A Origem da Justiça” (2016), a união DC/Warner ainda decepcionou seus fãs com o embaraçoso “Liga da Justiça” (2017). Foi ter um breve respiro de inspiração e sucesso só com “Aquaman” (2018), mas logo em seguida nos insulta com o tosco “Shazan” (2019), filme que parece ter sido feito para crianças de até oito anos de idade (posso assegurar que “Power Rangers – O Filme”, de 2017, se saiu bem melhor com esse público-alvo).
No entanto, com o passar dos meses a situação parecia mudar, e após sua inclusão no 76º Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 31 de agosto de 2019, onde recebeu o Leão de Ouro e, ao final de sua apresentação, foi aplaudido de pé por oito minutos ininterruptos (isso mesmo… oito minutos), o filme foi totalmente ‘hypado’. Virou assunto principal nas rodas de cinéfilos, nerd’s e jornalistas mundo afora. Chegou a ser especulado que, por ter cenas de violência explícita e praticadas por um ‘doido varrido’, poderia influenciar outros malucos a cometer atrocidades na vida real, e que deixou em alerta até mesmo as autoridades ligadas à segurança pública. Isso tudo foi o suficiente para deixar milhões de fãs ansiosos pela estreia oficial nos cinemas, o que aconteceu na última quinta-feira, dia 3 de outubro (guarde bem esta data) e vem enchendo todas as sessões até onde se tem notícias.
E somente agora, depois de “investirmos” duas horas do nosso precioso tempo na sala escura, temos a certeza de que “Coringa” é, realmente, parte da DC Black, uma série de filmes baseados nos personagens da DC separados do Universo Cinematográfico DC.
Ou seja, é um filme que não se inclui no universo cinematográfico da DC, que não deve sequer ser referenciado nas obras em que já apareceram Superman, Batman, Mulher Maravilha, Flash, Ciborgue e Shazan. São dois universos diferentes. Tanto que neste filme a única referência que temos a um super herói é uma breve aparição do pequeno Bruce Wayne, seus pais e o momento em que eles são assassinados. Tudo bem que é neste momento em que nasce a figura do Morcegão, mas é só isso e nada mais. O filme é totalmente sobre o Coringa e totalmente do Coringa. Tanto que o personagem Arthur Fleck aparece em todas as cenas, em praticamente todos os mais de 120 minutos de película.
É, sobretudo, um filme de drama, de suspense, que faz uma abordagem mais crua de um personagem que, literalmente, apanha a vida inteira, é sacaneado constantemente por estranhos e até mesmo pelas raras pessoas que ama ou confia. É um filme que mostra, sem pudor, a crueldade do ser humano e de uma sociedade assolada por uma forte crise econômica (o filme é ambientalizado nos anos 80) e uma devastadora crise social. É uma obra que bebe, sem nenhum problema, da riquíssima fonte de Martin Scorcese (se viu alguma semelhança com o clássico “Taxi Driver”, de 1976, você não foi o único, acredite…) da fonte de Stanley Kubrick (vai dizer que não pensou nas loucuras do protagonista de “Laranja Mecânica”, de 1971?) e de Brian de Palma (não negue que também lembrou da porra-louquice de Tony Montana em Scarface, de 1984).
É uma obra fenomenal sobre a vida despedaçada de uma pessoa que já possui um distúrbio psicológico que o faz dar gargalhadas mesmo em momentos de tristeza e decepção. Mostra, sem qualquer piedade, um cara totalmente fodido, que luta para sobreviver, para alcançar seus sonhos, mesmo vivendo em completa miséria, desacreditado e desrespeitado por tudo e por todos.
E, por Deus! Que atuação primorosa de Joaquim Phoenix, um ator muitas vezes esquecido e desvalorizado pela indústria cinematográfica, mas que decidiu, literalmente, ‘vestir’ o personagem. Tanto que, para isso, chegou a perder 25 quilos. E nos entrega aquela que seja, provavelmente, sua melhor performance, que nos faz ter a certeza de que, quando um artista quer, ele é o melhor para os seus fãs. E ele foi, com louvor! E ouso dizer que, se ele não ganhar o Oscar 2020 de Melhor Ator, ficará atestada toda a já controversa identidade moral da Academia.
Joaquim Phoenix foi tão absurdamente dominador e perfeito que alguns tolos começaram a fazer comparações com o Coringa de Heath Leadger (que recebeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, de 2008). Ora, só acéfalos em cinema fariam tal comparação, pois estamos falando de dois personagens de universos diferentes. Heath Leadger é, até hoje, o melhor Coringa em todos os tempos, em um filme do Batman! Isso ninguém é capaz de contrariar. Ele foi perfeito e nos deixou com a impressão de que nunca haverá outro Coringa como ele… pelo menos não num filme onde o protagonista é o Homem Morcego.
Mas estamos falando agora de um Coringa de um filme do Coringa, um filme que conta (de forma totalmente desvirtuada da que conhecemos nos quadrinhos) a origem do maior psicopata das HQ’s. E agora, após me maravilhar com essa obra prima, estou completamente confortável e seguro para dizer que temos o melhor Coringa de todos os tempos, sendo só ele, o vilão, e não um mero coadjuvante em um filme de herói.
Portanto, se você ainda não assistiu, vá logo ao cinema! Mas com a certeza de que você não vai ver algum super herói, você não verá a figura do Batman, você não verá cenas de luta coreografadas, você não verá alguém com super poderes, você não verá explosões e destruições, você não verá crimes minuciosamente arquitetados, você não verá um vilão podre de rico, com capangas ‘coloridos’, com armas exageradas ou cômicas e, muito menos, você não verá nada feito para o público infanto-adolescente.
“Coringa” é um filme para adultos, um filme que está totalmente fora do contexto do universo de vilões e super heróis dos quadrinhos e do cinema. É um filme único. É um filme que mostra a vida de um ser humano, doente física e mentalmente. É um drama forte, pesado, que traz uma abordagem sem meias palavras, que traz uma linguagem até mesmo grosseira (tem muitos palavrões) e (segundo alguns retardados), poderia (eu disse ‘poderia’) ter alguma influência na mente de pessoas desajustadas. Mas convenhamos: pra doido qualquer imagem, filme ou ato pode servir de ‘gatilho’ para que atrocidades sejam cometidas, confere?
“Coringa” não é um filme que veio para destruir bilheterias. Não é um filme que veio para disputar com os blockbusters (não dá nem para suscitar alguma disputa com “Vingadores – Ultimato) e jamais quis ser um filme para agradar a todos ou influenciar alguém. “Coringa” já é um filme sem igual, que tem identidade própria e que, certamente (se a indústria não cair na besteira de fazer uma sequência), vai entrar para os anais da história do melhor que o cinema pode produzir, e ficar lá nas prateleiras de cima, ao lado de grandes clássicos, aqueles que são intocáveis e sempre serão lembrados, de geração para geração.
E, para concluir, eu só gostaria de dizer uma coisa que aqui todos verão neste filme: o Coringa de Joaquim Phoenix é capaz de cometer muitas atrocidades, pois é uma criatura doente e tem um monstro dentro de si que foi gradativamente alimentado por décadas, mas, na vida real, eu tenho certeza que ele, mesmo com toda loucura que possui, jamais cometeria tamanha infâmia de levar seus filhos, menores de 16 anos, para assistir a este filme, como eu vi fazerem alguns estúpidos pais e mães, ontem, lá no Cine Araújo, e serem devidamente barrados!