Caronte é, na mitologia grega, o barqueiro que leva as almas das pessoas mortas para o Hades, atravessando o rio Aqueronte, um rio de águas turbulentas que delimitava o inferno. Ele é um velho muito magro, porem muito forte e só atravessava os mortos que fossem devidamente sepultados e cobrava por este serviço, dai vinha o costume de sepultar os mortos com duas moedas sobre os olhos. Caso uma a alma de alguém que não tivesse tido acesso a um velório correto tentasse passar Caronte o impediria, e este deveria vagar por cem anos, para cima e para baixo a margem do rio, até que pudesse enfim atravessar. Em Porto Velho tivemos uma história um pouco parecida. O Caronte de Porto Velho não era grego, era um negro antilhano, funcionário da EFMM. Seu nome era Oscar Depeiza Maloney.
O senhor Oscar Depeiza Maloney foi o pai da ilustre professora Úrsula Maloney, a mulher do sorriso largo e radiante e teve como esposa uma brasileira da gema, a mato-grossense Cleta Francisca. Ele, nascido em 1888, chegou às oficinas da EFMM em Porto Velho no ano de 1908 aos dezoito anos para trabalhar nesta empresa. Em 1917 ele era encarregado da instalação de bombeamento d´água para abastecer certos moradores da cidade. Certamente havia outros, mas, para Anísio Gorayeb [1], ele foi o primeiro bombeiro hidráulico da cidade e que, só por isso, deveria ter uma rua da cidade com seu nome como forma de homenagem.
No entanto, aos 29 anos, Oscar Maloney era também a pessoa responsável pelo bote, era o barqueiro da ferrovia que, dominicalmente, levava várias pessoas para passear na conhecida represa do igarapé da Candelária, entre a linha férrea e os limites da favela. [2] Num certo domingo, “depois de terem dado expansão à sua alegria, subiram o igarapé que margeia o sítio do Sr. José de Pontes e o Hospital de Candelária”[3]Ele permitiu que nove pessoas antilhanas ocupassem um pequeno barco. Um dos passageiros, o jamaicano Sr. Henry Cargill, o condutor de trem da Comissária, sob os protestos dos que não sabiam nadar, brincou durante o passeio, balançou o barco até que ele virou [4]. É claro, a superlotação ajudou muito nisso. Dos nove tripulantes, quatro que não sabiam nadar morreram afogados. Se eles foram ou não para o céu, isso depende da mitologia que você leitor acredita. O barqueiro da ferrovia Oscar Maloney, pelo jeito sabia nadar e sobreviveu para depois contar o que se passou na delegacia de polícia da época. Ele foi apenas um dos narradores do acontecido.
Mesmo tendo os narradores alegado que ninguém havia ingerido bebida alcoólica, ninguém havia dado expansão à sua alegria dessa forma. Não obstante, sabemos por meio de outras narrativas registradas, que tal bebida era consumida também por inúmeros antilhanos residentes da cidade. Até provocava brigas e confusões. Consumiam-se normalmente bebidas brasileiras por serem mais baratas que as importadas do exterior. Uma dessas narrativas é a da descendente de antilhanos, a senhora Aurélia Banfield [64 anos] que na década de 1980 afirmou:
A maioria das confusões eram entre eles mesmos, os barbadianos. É, porque eles tinham rixas né? Cada qual queria ser o melhor. – Um dizia: – “O meu pai é melhor” – Dizia outro: – “O meu é que é melhor que o seu! E aquela coisa toda” E acabavam sempre brigando. Bebiam demais também. A maioria das brigas deles era por bebedeira. A bebida vinha de fora, porque aqui não se fabricava nada. A maior parte era importada. Do Brasil se consumia a cana que era mais barata, a outra era mais cara. Né? Tinha bebida boa, só que […] E mesmo depois da saída dos americanos a Comissária […] funcionava.[5]
Com base nesse relato da senhora Aurelia Banfield e de outros quem garante que não haviam tomado uma e outras neste dia? Por que o Oscar Maloney, o responsável pelo barco, o barqueiro da ferrovia permitiu sua superlotação? Por que não fez nada para impedir o Henry Cargill de brincar dentro dela? Por que o jamaicano Cargill estava tão alegre e brincalhão nesse dia? Um dado curioso é que anos depois o Oscar Maloney fundou o Danúbio Azul Bailante Clube em sua residência no Alto do Bode [6] onde se bebia água que passarinho não bebe. Será que este anglicano só bebia vinho da Eucaristia? Essas e outras questões estão ainda à espera de respostas.
O fato é que o Caronte negro antilhano de Porto Velho foi o barqueiro do fim da vida de seus patrícios que estavam no seu barco. Com ou sem moedas pagas, alcoolizados ou não, ninguém sabe ainda, se os que morreram afogados partiram dessa para outra “vida” ou se suas almas andam vagando no limbo. Quem sabe no dia que os mais conhecidos historiadores, com fama e com recursos financeiros, que moram em Porto Velho, pararem de romancear a história local, pararem de fazer narrativas açucaradas da mesma possamos descobrir essas e outras respostas para essas e outras questões acerca do vivido não tão glamoroso como muitos pensam.
Fontes:
[1]<NewsRondonia> Consulta feita em 24/06/2019
[2] Jornal Alto Madeira, ano III, Nº297, Domingo, 25/03/1920.
[3] e [4] Jornal Alto Madeira, ano III, Nº298, Domingo, 28/03/1920.
[5]. Aurélia Banfield, entrevista dada ao Centro de Documentação do Estado de Rondônia, da Secretária de Educação Cultura e Turismo – SECET [±1980]
[6] Jornal Alto Madeira, ano III, Nº297, Domingo, 06/02/1976.