Talvez as cruzes fincadas na terra não signifiquem as almas no altívolo. Na analogia entre o abrigo físico e o surreal, desconheço a anátema que excomungue as almas tanto do seu lugar de origem como do seu lugar de descanso.
Sepultura não é antro, a mata não abriga criminosos. Ela aloja matérias e alumia almas que mesmo pensando em um dia retornar a pureza do lar, o destino entregou a natureza, a responsabilidade de protegê-las e assentá-las no colo da terra mãe.
O imperialismo e seus asseclas nunca serão benévolos, e ludibriaram até as últimas gotas de suor humano, a mais atemorizante exploração capitalista de sujeitos imortais, conhecidos como homens de ferro que construíram uma estrada de sangue. Esses agentes trabalhavam como que confinados num calabouço florestal, sentenciados a carregarem o peso da ganância como se fossem animais transportando peso em cangalhas de cambitos.
Os atores sociais de uma secular história, oriundos de mátrias diversas, diante de uma aviltante exploração, tornavam-se cada vez mais os filhos caquéticos do cárcere ferroviário. Os contornos estratégicos dos caudalosos trechos encachoeirados da Madeira – Mamoré, ora sob chuvas e alagadiços, ora sob os efeitos de um sol amazônico causticante, resistiam obstinados, sem antes cessarem com os compromissos firmados de homens honrados.
Os trabalhadores da Madeira – Mamoré, tratados com coerção e sem comiseração, também não se tornaram subservientes a extenuante jornada de trabalho e conseguiram adotar medidas coletivas debelatórias, impondo com clarividência o respeito a mão de obra.
Muitos deles conseguiram tomar novos rumos e arriscaram sobreviver sob a proteção dos deuses da mata, preferindo não aceitar a insolência, e o desdém de determinações arbitrárias e despóticas de seus superiores.
A terra, porém, não perdeu a sua dádiva divinizante e permitiu que as suas almas transcendentais recebessem em sua original espacialidade o direito sagrado ao lugar. Um lugar diáfano e sem trevas, como se em cada cova fosse alumiada pelos raios de um candeeiro divinal. A religiosidade ribeirinha de Nossa Senhora das Candeias, proporcionou a entrada de um fio de luz que pudesse clarear e encandear todas as almas adormecidas no berço da mãe natureza.
As almas não estão secularmente enclausuradas numa cova que as rejeitou, elas estão divinamente guardadas e protegidas no lar sagrado da candelária. Se a matéria é devorada, a alma não. Ela vive arraigada tanto no enrijecimento das raízes de árvores nativas como no aroma e seiva de suas flores.
No imaginário sepulcro da candelária não se fala de cortejo fúnebre, de epitáfio, de execração profunda ou de xenofobia por entre túmulos adubados com línguas e culturas diferentes. Sem estereótipos ou estigmatizações se alojaram ao ser do imaginário: o estampido dos atritos entre vagões e dormentes, as impressões sonoras do apito do maquinista, os vínculos afetivos com a ferrovia e um ambiente que internalizou diversas nacionalidades.
Este concatenado ambiente é um jazigo internacional benevolente, e se por um acaso, um raio triunfante rasgasse o céu ao meio e se lá vivessem todas as boas almas vítimas do Holocausto, certamente, escolheriam o cemitério da candelária para descansar em paz.
Quem sabe a Organização das Nações Unidas não aprenderia esta generosa lição e lutaria pela paz diplomática entre as nações beligerantes, substituindo a sua parcialidade hegemônica que sempre procura intervir militarmente entre os países em estado de guerra.
Mas o cemitério da candelária continua sendo brioso e holístico no imaginário cultural de suas ancestralidades, diferentemente da maior extensão do percurso da rede ferroviária que vive sendo adubado pela pastagem do agronegócio.
Mesmo tendo sido materialmente surrupiado por diversas vezes, o cemitério não foi escamoteado e nem perdeu a sua estesia transcendental. Ele continua fulgente e impregnado as suas encantarias florestais e as substâncias ontológicas de suas almas incandescentes.
Criado sob a incúria capitalista e avidez imperialista, o cemitério da candelária continua com a sua vivacidade cosmopolita, e na volúpia de um eterno entranhamento com a natureza, estará sempre pronto e de forma radiante, a alumiar com alteridade e empatia, a heterotopia do lugar de suas almas.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.