O Brasil conta com cerca de 14 mil pessoas diagnosticadas com hemofilia, uma doença rara que causa sangramentos contínuos devido à ausência de um fator de coagulação sanguínea. Embora o tratamento profilático mais comum para prevenir essas hemorragias esteja acessível via Sistema Único de Saúde (SUS), muitos pacientes e cuidadores encontram dificuldades para administrá-lo em casa. Os dados são do Mapeamento Jornada do Paciente com Hemofilia A e B no Brasil, divulgado nesta quinta-feira, 31 de julho de 2025, pela Associação Brasileira do Paciente com Hemofilia (Abraphem), no Rio de Janeiro.
Desafios na Aplicação e Acesso ao Tratamento
Mariana Battazza, presidente da Abraphem, explica que a maioria dos hemofílicos necessita de infusões profiláticas de fator VIII ou IX para evitar sangramentos internos. Essas hemorragias podem causar dor intensa, degeneração de articulações e músculos, além de riscos neurológicos e morte. O medicamento é aplicado por via intravenosa, em média, três vezes por semana, mas a aplicação domiciliar é um desafio, especialmente para crianças pequenas.
A pesquisa revelou que 59% dos familiares de crianças de 0 a 6 anos não conseguem realizar a infusão em casa. Consequentemente, 27% buscam uma unidade de saúde, 14% vão a um centro de tratamento de hemofilia, e 18% contam com ajuda profissional em casa. Mesmo aqueles que conseguem fazer as infusões em domicílio precisam se deslocar aos hemocentros para retirar a medicação, geralmente uma vez por mês. Contudo, 57% dos pacientes residem a pelo menos 100 km de distância da unidade, resultando em um tempo médio de visita superior a 5 horas, considerando deslocamento e atendimento.
Battazza ressalta que essa situação “tira bastante a autonomia e exige muito mais tempo do cuidador”. Ela alerta que qualquer imprevisto na rotina pode dificultar ainda mais o acesso ao tratamento. Caso a cidade não possua um hemocentro, a família recorre a hospitais, que nem sempre estão preparados para atender a hemofilia, por ser uma doença rara. Além disso, em crianças, são necessárias duas ou mais tentativas de punção para uma infusão correta, complicando ainda mais a tarefa dos cuidadores, que já enfrentam uma grande carga emocional, conforme Verônica Stasiak, diretora estratégica da Supera Consultoria e responsável técnica pela pesquisa.
Sequência e Reivindicações
Apesar da ampla utilização da profilaxia, 59% dos pacientes entrevistados relataram pelo menos três episódios de sangramento no ano anterior à pesquisa, predominantemente hemartrose (sangramento nas articulações). Como consequência, 71% dos pacientes com mais de 18 anos já apresentam alguma limitação de mobilidade, sendo 90% desses casos permanentes. A pesquisa também destacou que 84% dos pacientes são cuidados pelas mães, e a rotina do tratamento, somada às limitações das sequelas, cobra um alto preço dessas mulheres. Um dado significativo é que 35% das cuidadoras deixaram de trabalhar, 23% reduziram a carga horária e 14% mudaram de emprego para atender às demandas.
A Abraphem reivindica uma alteração no protocolo de tratamento oferecido pelo SUS. Desde o ano passado, pacientes que desenvolvem resistência ao tratamento convencional recebem o anticorpo monoclonal emicizumabe, aplicado via injeção subcutânea. A associação pleiteia que crianças menores de 6 anos também tenham acesso a esse medicamento, devido à dificuldade das famílias com as infusões intravenosas.
O Ministério da Saúde informou que, em 2023, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde avaliou a inclusão do emicizumabe para pacientes menores de 12 anos, mas emitiu parecer desfavorável. A justificativa foi o “alto grau de incerteza sobre a eficácia da tecnologia nesse público, com base nas evidências científicas disponíveis”.
Mariana Battazza argumenta que os benefícios indiretos devem ser considerados, pois um tratamento mais eficaz resulta em menos sequelas, menos internações e melhor desempenho escolar e profissional. A pesquisa, financiada pela Roche (fabricante do emicizumabe), não investigou a relação custo-benefício dos medicamentos, mas identificou que 92% dos entrevistados desejam tratamentos menos invasivos. Verônica Stasiak defende que a via de administração não é apenas uma questão de preferência, mas envolve dificuldades de acesso venoso, convencimento de crianças e adolescentes, e questões logísticas, o que precisa ser mensurado na avaliação de tecnologias em saúde.
O Ministério da Saúde reiterou que os medicamentos são adquiridos pela pasta e distribuídos gratuitamente aos centros de tratamento de hemofilia em todo o país, garantindo o acesso à terapia adequada.