RIO — O descaso com os pacientes de anemia falciforme — doença que atinge entre 60 mil e 100 mil pessoas no país, segundo dados do Ministério da Saúde, de 2018 — tem se refletido na falta de medicamentos.
Até o fim de agosto, ao menos quatro estados estavam sem a hidroxiureia, que diminui o número de crises de internação. Dois deles regularizaram a situação, mas Rio de Janeiro e Rondônia, ainda não.
A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informou que a hidroxiureia está em processo de compra desde o dia 21 de outubro.
Em Rondônia, o remédio mais importante para controlar a anemia falciforme está em falta há pelo menos três meses. Segundo a Secretaria de Saúde do estado, o desabastecimento ocorreu porque, no processo de licitação, não houve propostas de empresas para o registro de preços do remédio em 2019. Com isso, o pregão do processo licitatório só ocorreu em 29 de outubro.
Pacientes que fazem o tratamento no Maranhão estavam sem a hidroxiureia desde o fim de de agosto, mas, de acordo com os falcêmicos ouvidos pelo GLOBO e a Secretaria estadual de Saúde, o abastecimento foi normalizado. No Amapá, o medicamento que faltava há aproximadamente um ano era o Exjade quelante de ferro, cuja distribuição também já foi normalizada.
Falta de medicação gera crises
A dona de casa Patrícia de Souza Telles de Oliveira Nascimento, de 39 anos, conta que na última quinta-feira, após a consulta do filho de 15 anos no Hemorio — instituto estadual de hematologia, no Centro do Rio— foi até a farmácia, mas não encontrou hidroxiureia, acido fólico e ibuprofeno.
A hidroxiureia custa de R$ 200 a R$ 300 nas farmácias. Patrícia tenta há mais de três meses conseguir medicamento, sem sucesso.
— Se a receita passar de três meses, tem que refazer os exames para pegar outra. Na farmácia, o funcionário diz que não tem previsão para a hidroxiureia chegar. Não tenho condições de comprar. Meu marido está desempregado e faz biscates, eu junto garrafa para vender. Minha mãe foi quem comprou o ácido fólico. Ele teve uma crise há dois meses e a rótula do joelho inchou — conta Patrícia, mãe de uma jovem de 20 anos que também tem anemia falciforme.
A secretaria estadual de saúde do Rio diz que não há registro de qualquer desabastecimento no Hemorio de ácido fólico e material para curativo.
Sem o medicamento há quatro meses, o aposentado Luiz Cláudio de Souza Mangano, de 56 anos, tem passado por sucessivas crises. Na última delas, foi parar na emergência.
Com uma úlcera na perna, Luiz conta que chegou a comprar materiais para fazer o curativo:
— Na crise, sinto muitas dores no corpo todo. A dipirona sozinha não estava fazendo efeito. Na emergência, só aliviou depois que me deram morfina. Semana passada, no Hemorio, não tinha pomada, gaze, nada.
No Maranhão, os pacientes reclamam da instabilidade na distribuição da hidroxiureia. Em maio, os falcêmicos estavam há dois meses sem o remédio. Quando receberam, a quantidade foi suficiente para suprir as necessidades apenas até o fim de agosto.
— Passamos três meses sem o medicamento, espero que não falte mais este mês — torce Laura Cutrim, presidente da Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia do Maranhão.
História de descaso
Desde que a doença foi descoberta no país, em 1945, pacientes lidam com uma série de negligências por parte das autoridades.
Só em 2005 foi criada a Política Nacional de Atenção Integrada às Pessoas com Doença Falciforme, criando protocolos, manuais e normas para que profissionais do SUS pudessem tratar dos pacientes. Atualmente, há uma dificuldade para obter dados sobre a doença no país.
Presidente da Associação de Falcêmicos e Talassêmicos do Rio de Janeiro, Zaira Gomes diz que falta no estado uma coordenadoria para os pacientes com anemia falciforme.
O Rio é o segundo estado com maior índice de doença falciforme, atrás da Bahia.
— A politica para essa população fica muito esvaziada. Tem aumentado o número de óbitos e o governo estadual não faz campanha. Tem criança que chega com a doença e os pais não sabiam que tinham traços. É preciso alertar sobre sintomas, tratamento. Já fizemos vários ofícios, pedindo a criação da coordenadoria estadual de doença falciforme. Quando os doentes entram em crise, vão para o Hemorio porque as UPAs não estão capacitadas para atendê-los.
Dia 27 de outubro foi o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. A data também celebra o Dia Nacional de Mobilização Pró-Saúde da População Negra. A coincidência se dá porque a anemia falciforme atinge predominantemente os negros.
Para a médica Joice Aragão, coordenadora emérita da Politica Nacional de Ação Integral às Pessoas com Doença Falciforme, de 2005 a 2015, a causa para o desinteresse das autoridades para esses pacientes está ligada ao racismo:
— Se a gente analisar o desprezo pela doença falciforme, ele vem com o racismo. A doença é de negro, mais de 50% da população são negros. O princípio do SUS fala em equidade e igualdade. Quem precisa mais é a população negra do Brasil. Se você não produz política com a finalidade de atender isso, é racismo.
Comitê sobre a doença foi extinto
Coordenador do Centro de Referência em Capacitação de Recursos Humanos em Doença Falciforme no Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, na UFRJ, Paulo Ivo Cortez de Araújo destacou a extinção do comitê de assessoramento técnico em doença falciforme do Ministério da Saúde.
— Há 14 anos, começou a ter visibilidade maior dessa doença. Não só dela, mas da saúde da população negra. Conseguimos discutir e estabelecer prioridades e uma política de atenção integral à população negra e à pessoa com doença falciforme. Tivemos um avanço muito grande. Depois disso, começamos a enxergar o desmonte do nosso SUS.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que "o medicamento hidroxiureia 500mg é financiado pela pasta, mediante transferência de recursos financeiros para aquisição pelas Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal, que são responsáveis pela programação, armazenamento, distribuição e dispensação. Os repasses referentes ao 1º, 2º e 3º trimestre estão regulares e já ocorreram para todo o país. Os referentes ao 4º trimestre já foram aprovados e estão sendo encaminhados para pagamento".
Cíntia Cruz e Evelin Azevedo