É na imensidão das espacialidades fronteiriças da mata brasiviana onde mora o velho da canoa, ao tempo em que esse espaço vivido é cosmopolitamente visualizado por ele na alma de seus atores sociais. Nesta inenarrável dimensão, o Deus dos sentimentos da floresta brasiviana, orienta as felicidades e as lamúrias da vida ribeirinha. No momento da fome ele faz com que a caça vá até a sua “espera[1]” na mata, e se o ribeirinho não estiver em condições de buscar a caça, esta, orientada pelo seu poder, vai até ao tapiri para que seja avistada e abatida. As narrações sobre a caça são das mais variadas e instigantes.
O brasiviano Leonardo Fragoso (Belo) nos conta que certo dia ficara de levar uma caça do rio Mamu até o Distrito de Extrema onde reside seus familiares para sua alimentação durantes os dias em que por lá iria ficar, mas ele não conseguiu. Certa noite já em Extrema ele sentiu o cheiro da caça na sua chácara e foi até lá para verificar o que era e deparou-se com um porco caititu. “Belo” conseguiu abater o animal, que para ele foi o forte desejo que ele estava sentindo, e o velho da canoa realizou a sua vontade.
Vinha do Mamu com a maior vontade de comer carne de porco, mas não consegui matar, aí fiquei com aquela vontade e vim embora para extrema. Cheguei em Extrema, fui numa chácara onde eu tinha um barracão de castanha. Era de noite, aí eu tive um pressentimento que tinha um bicho rodeando o barracão de castanha. Era um caititu mesmo. Nunca vi um negócio desse. Com certe4za foi o velho da canoa que o povo fala que vive no Mamu. Dizem que ele mora sozinho e só anda de noite, se você tiver com muita vontade de comer e não achar um bicho para matar, ele faz com que o bicho vá até você.
Nos devaneios poetizantes de “A poética do espaço”, Bachelard nos instiga a pensar sobre “A imensidão íntima” do ser impregnado ao seu envolto. A relação intrínseca do homem com a floresta é divinamente celebrada em sua imensidão pelo velho da canoa. Durante esta imensidão, o autor busca na poética de Baudelaire, a afirmação de que o homem é um ser vasto. Esta vastidão profunda do ser, viaja na vastidão da floresta, tornando-se algo entranhado num devaneio mútuo e estetizante. Para Bachelard, o termo vasto é:
Uma palavra grave, inimiga das turbulências, hostil aos excessos vocais da declaração. Uma dicção submetida à medida iria quebra-las. É preciso que a palavra vasto reine sobre o silêncio tranquilo do ser
É no remar da vastidão das águas brasivianas que este enigmático ser mitológico, contempla prazerosamente a encantadora floresta noturna sob sons divinizados, e numa peculiar e imaculada reciprocidade, a natureza cósmica também o diviniza, celebrando seu nascimento como mais um supremo Deus à serviço de sua pertinaz proteção. Um Deus que em sua celestial existência tem os modos de vida brasivianos, internalizados pelas alegrias e lamúrias das comunidades brasivianas do rio Mamu.
O velho é o sorriso de felicidade de uma mulher que gerou seu rebento e o grudou em seus braços, ouvindo o mais austero concerto do cancionismo inefável dos pássaros, animando os palcos florestais. Ele é o leite da alma da mata escorrendo nas veias abertas da seringueira, até ser retirado da tigela para em seguida ser defumado na fumaça do buião[2], transformando-se em resistente “péla[3]” de borracha do seringueiro, que com seu sapato de seringa[4] percorre os varadouros, sendo iluminados apenas pela luz noturna da poronga[5].
Mas o velho da canoa também internaliza lágrimas quando presencia uma família enlutada chorando na cova fria, onde fora enterrada uma criança silenciada por uma malária fatal. Os seres mitológicos estão atrelados aos modos de vida da comunidade ribeirinha brasiviana. Eles fazem parte de um mundo vivido, sustentado na poética estetizante do imaginário.
A criação mitológica do homem ribeirinho
É uma contemplação que estabelece equilíbrio de limite e grandeza do homem com a natureza.
O velho da canoa viaja na intimidade do ente brasiviano, ele procura atender os desejos da vida de uma pessoa, atender o que é de maior necessidade. Ele vive na imensidão da alma e na vastidão da relação do homem com a natureza.
[1] Determinado local situado na colocação do seringueiro, onde ele coloca bastante frutas silvestres, para durante a noite, esperar a vinda da caça para ser abatida. Na espera, o seringueiro pode ficar em cima dos galhos de árvores, ou preparar sua própria armação com troncos roliços de madeira, geralmente com uma altura que varia de dois a três metros.
[2] É um troço como uma chaminé de ferro ou de barro usada na defumação da borracha. Adaptada sobre o fogo, dispersa o fumaceiro. Também na falência o sujeito vê toda sua vida desaparecer pelo buião. Os cavacos são de maçaranduba e breu, e este faz a melhor fumaça para defumar a borracha. (Ranzi, 2017, p. 26).
[3] Bola de borracha, do fabrico do seringueiro, que depois de defumado o leite de seringa, dá uma péla. Seu peso varia conforme a vontade do fabrico. (Ranzi, 2017, p. 78).
[4] Seringueira. Designação da goma-elástica extraída de várias espécies de Hevea. Usa-se para designar a planta da seringueira. (Ranzi, 2017, p. 90).
[5] Lamparina que o seringueiro prende à cabeça quando sai para cortar a seringueira em plena madrugada. Lampião a querosene, ou a óleo, usado nas casas. (Ranzi, 2017, p. 81).









































