Os migrantes chegaram aos seringais amazônicos carregados de pertencimentos atrelados na cotidianidade da caatinga do sertão nordestino. Um conjunto de valores que também foram migrados impregnados ao ser do ente do sertão. Mas como a identidade não é estática, ela flui, tornando-se dinâmica e sendo transformada no espaço de ação do ente. A identidade sertaneja seria a partir daquele momento, metamorfoseada na identidade seringueira. Uma força identitária que também fez brotar o nativo da Amazônia brasileira.
Na Amazônia o soldado da borracha
Apropriado de “civismo e patriotismo”
Se convenceu de que o seu “heroísmo”
Se tornaria numa gloriosa marcha
Essas vidas tiveram uma forte baixa
Por onde a migração se estendeu
Os dados mostram o que aconteceu
Com os trabalhadores recrutados
Secreto[1] diz que entre 50 mil soldados
A metade morreu ou desapareceu
O escritor João de Jesus Paes Loureiro nos diz que para o nativo da Amazônia, a contemplação é um estado de sua existência. O princípio e o fim de suas relações com a vida cotidiana e a raiz de suas peculiaridades de expressão. O autor nos diz ainda que tudo isso “é uma contemplação que estabelece equilíbrio de limite e grandeza do homem com a natureza”.
É este equilíbrio que se torna o alicerce das colunas dos modos de vida do espaço vivido e das leis mitológicas da natureza. Sua solidez e retidão permite ao homem ser relutante em seus fazeres, porém, não admite que nesta empreitada da vida, o homem abuse de seus feitos e passe a esnobar do que esta natureza em sua dadivosa bondade lhe oferece na Amazônia do espaço seringueiro.
A Amazônia do espaço seringueiro
Não há faixas, nem divisas, nem barreiras
A Amazônia é o humano das fronteiras
Dos coletivos do seu torrão primeiro.
O seringueiro difere-se do grileiro
Pois não sente o ego capitalista
Não importa em ser nacionalista
Que impõe barreiras à nação
Fronteira é a transfiguração
Do ser de um ente humanista.
O seringueiro em sua ampla visão mitológica e cosmogônica, imbrica-se tão fortemente à natureza exuberante, que esse mundo do qual ele vive e sente, transforma-se numa natural intimidade oferecida ao ser de sua existência. O filósofo francês Gaston Bachelard nos informa que “ a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito”.
Heidegger[2] diz que a marca da identidade
Constitui um traço do ser do ente
Um traço que se configura na mente
Com toda sua alteridade.
Hall[3] nos diz que a modernidade
Provoca na identidade transformação
O sujeito passa por desconstrução
Na dialética do seu dia a dia
Uma influência da modernidade tardia
Uma modernidade também em construção
O seringueiro vai desta forma, criando e recriando suas mitologias, seus devaneios e lapidando a sua existência no seu espaço de ação. A mãe da seringueira é um exemplo, de que a ordem cosmológica e espiritual é determinar que o homem e a natureza, precisam conviver numa reciprocidade de respeito um com o outro.
Dardel[4] fala das ligações existenciais
Que o homem mantém com a terra
Um imbricamento que nunca se encerra
Em suas configurações mentais
Suas relações socioespaciais
Que identifica a totalidade do ser.
A presença se transforma em pertencer
Na geograficidade da terra com o lugar
O espaço se abre além do olhar
Onde o homem constrói seus modos de viver
A Amazônia, portanto, é constituída de um emaranhado de deuses. Esses deuses, estão dispersos na imensidão de sua grandeza mitológica. Eles estão por toda parte. As populações tradicionais e as coletividades indígenas são provas incontestáveis dessa vasta grandeza espiritual que embeleza cada vez mais, o ser do ente beiradeiro em suas espacialidades e territorialidades.
[1] As estatísticas da morte nunca são muito precisas, mas podem nos dar uma ideia da magnitude da tragédia humana. De aproximadamente 50 mil soldados da borracha – entre trabalhadores e dependentes – que foram para a Amazônia entre 1943 e 1944, estima-se que quase a metade morreu ou desapareceu. (SECRETO, Maria Verônica. Soldados da borracha: Trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas. 1ª Edição, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 37).
[2] A unidade da identidade constitui um traço fundamental no seio do ser do ente. (HEIDEGGER, Martin Que é isto a filosofia? Identidade e diferença. 3ª Edição, São Paulo: Livraria duas cidades, 1971, p. 52).
[3] Essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais (…) essa perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito (…) somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada (HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª Edição, Rio de Janeiro: Lamparina, 2015, p. 10).
[4] Ele coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a terra, ou, se preferirmos, sua geograficidade original: a terra como lugar, base e meio de sua realização. Presença atraente ou estranha, e, no entanto, lúcida. A paisagem não é um círculo fechado, mas um desdobramento. Ela não é verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o espaço abre além do olhar. (DARDEL, Eric. O homem e a terra; natureza da realidade geográfica. 1ª Edição, São Paulo: Editora perspectiva, 2015, p. 31).