Conheci Lalá em 1968. Eu tinha cinco anos de idade e ela – não sei. Estávamos na mesma sala de aulas, num pequeno educandário em Olinda. Eu, um menino abestado com corte de cabelo tipo militar. Ela, parecia uma mocinha, laços de fita no cabelo, saia plissada. Nos víamos quase todos os dias. Na escola e na minha casa também.
Lalá era a personagem principal da minha primeira cartilha do ABC, convidativamente chamada “Vamos Sorrir”. Aqui registro minha primeira reação: não seria mais apropriado “Vamos Aprender”? Digo isso agora, após quase seis décadas, quando reencontro a velha cartilha e tenho dois sentimentos: quase morro de rir com o conteúdo e agradeço muito a Deus ter superado as leseiras que impuseram à minha geração.
Não procuro culpados. Nem a autora, a editora, a professora, a diretora da escola ou meus pais são responsáveis por aquele bestializante sistema de alfabetização. As ordens vinham de Brasília. Quem sabe, a ideia era estupidificar-nos. Você duvida? Vamos sorrir (para não chorar) com algumas partes da cartilha.
Na tentativa de ensinar o uso das letras, uma a uma, as lições apresentavam Lalá envolvida em situações e cenários descontinuados e sem sentido. Na primeira, Lalá é apresentada como bonita, bela e com uma boneca (a vez da letra B). Lalá tem uma casa e a casa tem uma copa e a copa tem caco (?). De repente, surge Dadá que tem um dado; Fábio tem um gato Gugu e recebe bolo de Lalá. Com toda a naturalidade, Juju olha a juba do leão; Maria mima o macaco dela; Nini viaja no navio e o pato não gosta do peru que é de Paulo. Chegando às últimas letrinhas, Rosa está na rede e não vê o rato que rói; Lalá joga o sapato no sapo; Xerxes está com tosse e toma xarope de abacaxi. Por último: Zizi é a boneca de Zazá. Ah, tem mais: Lalá vê a girafa que se assusta com o foguete; Luís colhe jambos com Lalá e ela recebe uma carta do próprio pai, que é guarda e usa farda.
Os mais de vinte personagens da cartilha vão surgindo na vida de Lalá – cada um com a letra do nome na ordem alfabética – num roteiro surreal, isto é, incoerente e absurdo. Por que não ensinaram a mim e às outras crianças A de abraço, B de boca, C de carinho, D de dedo, F de faca? Não seria mais fácil e lógico aprender N de nariz, P de pé, T de tijolo? Quem naquela sala de aula havia visto pessoalmente um leão ou uma girafa, e uma girafa que se assusta com foguete! Que foguete? Dos Jetsons?
Naqueles primeiros anos escolares tirei nota máxima. Num tava nem aí se Lalá jogava o sapato no sapo ou se dava bolo pro Fábio. Lá em casa, a rotina era bem diferente. Meu pai trabalhava muito e, chegando em casa, cansado, conversava baixinho com mainha sobre a tensão nas ruas, os cartazes de “procura-se”, as pessoas que saiam de casa e nunca voltavam. Com os anos, descobri que a realidade era completamente diferente daquele mundo do pintinho que piava piu piu. Como por um milagre, chego na terceira idade compreendendo um pouco melhor o que é viver, comparando aqueles difíceis anos 1960 com nosso hoje.
A atual geração não deve permitir que qualquer bestialização do cidadão seja instaurada em nossa amada pátria. O respeito ao próximo, o estado democrático de direito, a liberdade responsável e a solidariedade com os menos assistidos precisam ser ensinados nas escolas, desde os primeiros anos.
Ao ser pai, levei meus filhos (hoje, adultos) a verem o mundo e as ideologias vigentes com clareza crítica alicerçada no cristianismo de Jesus, que ama, respeita, cuida e cura o outro que sempre será diferente. Enquanto isso, talvez os filhos de Lalá saboreiem alienação. Afinal, Lalá não viu o navio.