Por Marquelino Santana
O batelão sempre foi considerado um relevante marcador histórico-cultural da Amazônia Sul – Ocidental brasileira e boliviana.
Essa tradicional embarcação tronou-se um essencial e indispensável meio de transporte durante os dois grandes ciclos de produção da borracha natural nos seringais amazônicos. Para o escritor e jurista Pedro Ranzi, o batelão é uma embarcação regional que serve para transportar pessoas, animais ou mercadorias; construído de madeira com motor de centro ou na popa (rabeta).
Importante ressaltar que o batelão durante os mencionados surtos de borracha foi grandemente utilizado como regatão. Para Pedro Ranzi, o regatão era uma espécie de comércio em que se vendia de tudo no interior do batelão. Segundo o mesmo autor, o regatão era ao mesmo tempo, casa, armazém e escritório que vivia subindo e descendo os rios amazônicos. Também chamado de regatão, o mercador, para Ranzi, adquiria os produtos bem mais baratos nas cidades e vendia aos seringueiros e ribeirinhos a preços considerados exorbitantes naquela época.
Nessa clarividente relação do homem com a natureza, o batelão surge como um complacente cordão umbilical que comtemplava esse relacionamento entre os ribeirinhos, a mata e as águas. Essa peculiar embarcação das tradicionais coletividades amazônicas continua resistindo na espacialidade da fronteira Brasil – Bolívia, sendo cotidianamente utilizada para o transporte de castanha, farinha, Açaí, Banana, Feijão e demais gêneros alimentícios entre os ribeirinhos dos seringais do Departamento de Pando com a Região da Ponta do Abunã no Estado de Rondônia.
O batelão é também um navegar devaneante de diálogo, interação e reflexão, onde brotam as mitológicas narrativas entre os navegantes ribeirinhos. São narrativas extremamente singulares dos seringais brasivianos, uma poética de um imaginário privilegiado, de uma memória coletiva transcendental, de uma relação ontológica da exaltação dos sentidos e de uma singular e plural encantaria florestal que alimenta a alma do povo beiradeiro.
Sobre a poética do imaginário amazônico, João de Jesus Paes Loureiro, nos esclarece que é uma poética que se revela não somente nas criações dos diversos campos da arte, mas que também estabelece a forma de uma ética da relação dos homens entre si, e com a natureza. Para Loureiro, é uma poética em ação que se instaura no cerne de uma cultura governada pela função estética do imaginário. Enquanto isso, Gaston Bachelard nos instiga a refletir, ao dizer que para entrar no âmbito do superlativo, é preciso trocar o positivo pelo imaginário, isto é, é preciso escutar os poetas.
O batelão não é marca dominante
O batelão não é marca dominada
O batelão é alma materializada
Simbolizada no leito vivificante.
Nas águas do rio poetizante
O batelão pertence a Florestania
O seu corpo navega em sincronia
Fascinando as veias míticas do rio
E a Mãe-d’água com seu canto seduziu
O navegante em estado de nostalgia.
A tristeza do navegante naquele dia
Transformou-se em grande felicidade
O navegante matou a sua saudade
Abraçando a Mãe-d’água com alegria
Na certeza de que ele a beijaria
A Mãe-d’água apaixonada lhe beija
O seu corpo, o corpo dele deseja
Um desejo de amor e sentimento
A natureza celebrou o casamento
E o batelão se transformou em igreja.
No estetizante e fabuloso rio, a viagem segue ornada de flores. O esplendor florescente brilha de forma divinal e colossal.
A imensurável mata tem as suas suntuosas raízes, embelecidas pela corrente das águas. Enquanto a irradiante embarcação penteia maviosamente os cabelos da Mãe-d’água, se pode ouvir o seu eloquente cantar, ecoando mitologicamente sob a poética do batelão brasiviano.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.