Tenho acompanhado com crescente inquietação a forma como o sistema de justiça criminal brasileiro tem lidado com o tipo penal previsto no art. 217-A do Código Penal: o estupro de vulnerável. O texto é claro: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. Trata-se de crime hediondo, com pena elevada, que prescinde de violência ou grave ameaça, bastando a comprovação do ato e a idade da vítima.
Ocorre que, ao longo de minha atuação profissional, tenho presenciado um fenômeno perturbador: em três casos distintos em que atuo, adolescentes apontadas inicialmente como vítimas, durante a instrução, confessaram que mentiram. Fizeram-no de forma espontânea, por meio de escuta especializada, inclusive com o auxílio de suas próprias mães, admitindo que os fatos nunca ocorreram. E, mesmo diante dessa retratação formal e inequívoca, o Judiciário insiste em manter a acusação — e, por vezes, a condenação — com base apenas no formalismo penal.
É nesse ponto que desejo provocar uma reflexão mais profunda. Não se trata aqui de relativizar a gravidade dos crimes contra a dignidade sexual, nem tampouco de desacreditar as vítimas. Trata-se, sim, de defender o valor da verdade, da análise concreta dos fatos e da justiça que não se curva à automatização da pena.
A legislação penal brasileira repudia a responsabilidade objetiva, e mesmo no crime de estupro de vulnerável, é imprescindível a análise do caso concreto. O conceito de vulnerabilidade, que substituiu a antiga presunção legal de violência do revogado art. 224, precisa ser compreendido com maturidade: não se pode aplicar uma norma tão grave sem escutar, verdadeiramente, a vítima — sobretudo quando ela mesma nega o que antes afirmou.
Mais grave ainda é quando o sistema ignora o impacto humano dessas decisões. Um exemplo dramático a título de ilustração: vamos supor, uma adolescente, em escuta especializada, afirma que mentiu sobre ter sido estuprada com participação da sua mãe. Diz-se arrependida. Relata que, na ocasião, contou com o incentivo da própria avó — mãe da ré — e que não compreendia totalmente as consequências de seu relato. Mesmo diante dessa retratação firme, o Judiciário, por uma leitura engessada da norma, opta por ignorá-la e, ao final, condena a mãe.
Neste caso, pergunto: será que a pior pena não foi imposta à própria adolescente? Ela não perdeu, de forma irreversível, o convívio com sua genitora, com quem jamais voltará a dividir a vida cotidiana, a construir memórias, a celebrar afetos? Que nome se dá a essa separação vitalícia senão pena perpétua?
Muito embora a Constituição Federal vete expressamente a pena de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, “b”), há situações em que o sistema penal, de forma indireta, a impõe — não ao condenado formal, mas à vítima colateral do processo: a filha que se arrepende, mas é ignorada; a família que se desfaz por um fato que nunca existiu; o vazio de uma mãe ausente, sentenciada com base em uma ficção.
O Direito Penal moderno deve repudiar a automatização da culpa. A tipicidade formal não pode afastar a análise da tipicidade material, como bem lembram doutrinadores como Bitencourt, Nucci, Damásio e Rogério Sanches. O consentimento pode ser irrelevante para a configuração típica? Sim. Mas a mentira consciente e confessada da suposta vítima não pode. A prova da inocência deve ser capaz de romper o ritual processual, sob pena de termos um Direito Penal que pune com os olhos vendados e os ouvidos tapados.
A proteção à infância e juventude não pode se converter em blindagem absoluta contra a verdade. A escuta especializada, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, deve servir ao esclarecimento dos fatos, e não apenas à sua ratificação. Se a vítima nega o crime, se afirma que mentiu, se detalha os motivos da falsa acusação, ignorar tais elementos é abdicar do compromisso com a justiça.
Este artigo é, portanto, um chamado — não contra a proteção dos vulneráveis, mas contra o silenciamento da verdade. O sistema de justiça precisa enfrentar essas realidades desconfortáveis com coragem e lucidez. Defender o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência não é um ato de leniência. É a própria essência do Estado de Direito.
Se quisermos evitar penas perpétuas disfarçadas, precisamos ouvir com atenção quem se arrepende de ter mentido. Ignorar a retratação de uma adolescente, feita sob escuta especializada, com apoio familiar e marcada pelo arrependimento sincero, é desprezar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Jamais devemos esquecer que a maior proteção conferida pelo Juizado da Infância e Juventude é voltada ao interesse superior do menor, que tem direitos fundamentais inalienáveis. E um desses direitos — que não se encontra positivado em códigos, mas sim no campo da humanidade — é o direito de se retratar. Condenar um pai ou uma mãe por um crime tão bárbaro como o estupro de vulnerável, com base em uma acusação falsa, é, na prática, retirar do menor o direito eterno de reaproximação, de reconciliação, de reconstrução de vínculos com quem ama.
A condenação imposta ao adulto, ainda que temporária no papel, torna-se perpétua na alma de um filho que já não pode mais revogar o passado. Trata-se de uma amputação afetiva definitiva. Por isso, o Judiciário não pode fechar os olhos à verdade que clama nos autos. Não podemos permitir que o Direito Penal seja instrumento de punição irreversível para toda uma família por um erro que, apesar de gravíssimo, foi confessado por quem dele se arrepende.
É possível falar em verdadeira justiça quando, mesmo diante da retratação espontânea e arrependida de um menor — colhida sob escuta especializada — mantém-se a condenação de um pai ou de uma mãe, impondo-se, ao próprio menor, a mais dolorosa das consequências: a perda definitiva do convívio com quem ama, por um erro que reconhece ter cometido?
*Renato Cavalcante é advogado criminalista