"Hoje, de manhã, ela olhou pra mim e falou assim: 'Eu acordei com medo'. E eu falei: 'Com medo do quê?' E ela disse: 'Com medo de ter que voltar pra casa'." O medo é de uma criança de dez anos que, há cinco meses, mora com os tios. No boletim de ocorrência, a mãe da menina assume que a filha era abusada desde os quatro anos. Quem conta é a tia, uma professora universitária de 37 anos, que não quer ser identificada e viu a história se repetir.
M* nasceu em 1983 e passou a ser abusada pela mãe no fim da década de 1980. Aos 12 anos, começou a se rebelar contra a violência, desenvolveu bulimia e, aos 24 anos, saiu de casa. Ela nunca mais falou com a mãe e, até hoje, faz tratamento psicológico e psiquiátrico.
Casos assim ficaram mais comuns durante a pandemia, dizem os especialistas. Só no Conselho Tutelar do Rio Pequeno e Raposo Tavares, na Zona Oeste de São Paulo, as denúncias de abuso sexual, agressão física e maus-tratos contra crianças e adolescentes aumentaram 670% de janeiro a abril deste ano em relação à mesma época do ano passado. Se comparadas as queixas feitas nos quatro primeiros meses de 2019 com igual período deste ano, o crescimento foi de 215%.
De acordo com o conselheiro tutelar Gledson Deziatto, militante dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, além dos números, há outro problema: o que antes era denunciado como suspeita, com a pandemia virou o que eles chamam de "denúncia tardia".
"Antes, as escolas percebiam que algo não ia bem com a criança e já acionavam o Conselho Tutelar. Quando as escolas e creches foram fechadas, o perfil mudou, e as queixas passaram a ser feitas por vizinhos ou pessoas da família, mas, até que o denunciante percebesse o que estava ocorrendo, muitas vezes, o abuso havia sido cometido rotineiramente", afirmou.
Especialistas alertam que 80% dos casos são registrados dentro de casa, justamente por quem deveria proteger as crianças, e a maioria envolve pessoas da família. Grande parte das vítimas são meninas.
É o caso de M*, que nasceu em uma família de classe média alta e que exemplifica o que acontece com a maioria dos meninos e das meninas vítimas de abuso: "Eu não tinha noção de que aquilo era um abuso sexual. Eu sabia que aquilo não era normal, mas eu só comecei a perceber que tinha alguma coisa errada ali quando eu me tornei adolescente".
Casada, a professora universitária não quis ter filhos com medo, segundo ela, de que alguém fizesse com a criança o que, um dia, fizeram com ela. "As pessoas falam: 'Deleta isso da sua vida', como se eu fosse um robô, como se eu fosse um computador que tem a tecla 'Delete'. Eu não sou robô, eu não sou um computador. Eu vou carregar isso comigo para sempre. É uma coisa que dá pra você amortecer, mas esquecer não dá. Não dá pra você apagar da sua vida, é impossível."
Há cinco meses, a professora universitária começou a criar a sobrinha do marido, que foi abusada pelo pai, dependente químico. A menina foi entregue a ela pelos próprios pais apenas com os documentos e uma mala pequena com roupas. Hoje, o processo de guarda corre na Justiça.
"Eu tirei ela dessa situação cedo. E eu nunca fui tirada dessa situação. Nós somos muito apegadas uma à outra. Nós nos completamos na falta daquele amor que não tivemos."
No caso da garota, foi aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, na época dos abusos sofridos pela professora, nem sequer existia.
Por enquanto, o pai da menina está solto. Este é justamente um dos maiores entraves na busca pela redução do número de casos. Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da infância e da juventude, menos de 10% dos agressores são punidos. "Temos que ter a consciência de que muitas crianças e adolescentes no Brasil estão dormindo, estão vivendo com seus inimigos, exatamente quem deveria protegê-los", destaca Alves.
Autoconhecimento e Defesa
Para ajudar a ensinar meninos e meninas a se proteger de abusos, profissionais de várias áreas – educação, comunicação, direito, medicina e psicologia – se uniram e criaram uma cartilha que explica as partes do corpo e convida as crianças a falar ou desenhar sobre elas mesmas.
A publicação já foi traduzida para o inglês e o espanhol. Premiado no ano passado, o projeto “Eu me Protejo” distribui os materiais gratuitamente pela internet. “É um mito achar que isso não pode acontecer na família de qualquer um”, diz Patrícia Almeida, coordenadora da iniciativa.