Especialistas afirmam que o projeto de lei que libera a compra de vacinas contra a Covid-19 pelo setor privado para imunizar funcionários é inconstitucional, sem utilidade para o SUS e uma tentativa do lobby de empresários de enfraquecer a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), único órgão no Brasil com autoridade para aprovar o uso de medicamentos.
A Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do PL 948/21 na terça-feira (6) e a votação deve ser retomada nesta quarta-feira (7) para concluir a análise. O projeto, então, seguirá para o Senado e, depois de aprovado, precisará de sanção presidencial para entrar em vigor.
Para o médico e advogado do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP, Daniel Dourado, o projeto é um drible na autoridade da Anvisa para que empresários possam comprar vacinas sem respaldo científico no Brasil.
"É uma tentativa dos empresários de tirar o poder regulador da Anvisa para conseguirem comprar vacinas sem aprovação para uso emergencial ou registro e utilizar nos seus empregados”, diz Dourado.
Thomas Conti, doutor em economia e professor do Insper, também afirma que o projeto tira a autoridade da Anvisa.
“O PL foi anunciado como um projeto para facilitar a participação de empresas na vacinação, mas ele é muito radical, pois permite que vacinas aprovadas em qualquer regime, em qualquer lugar do mundo, sejam trazidas para o Brasil sem o aval da Anvisa”, diz Conti. "É um jeito de desviar da Anvisa”.
Antecipar vacinação de outros grupos é 'imoral'
Outro ponto debatido pelos especialistas trazidos pelo PL é o fim da obrigatoriedade de aguardar a vacinação de grupos prioritários realizada pelo SUS. Para o médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina, a ação é "imoral".
“É uma imoralidade você conseguir antecipar sua vacinação porque tem dinheiro. Quem tem dinheiro toma a vacina antes. É isso que estamos propondo? Quem tem dinheiro pode qualquer coisa e quem não tem fica na fila? Vamos instalar a barbárie no Brasil?”, diz Vecina.
'Inútil' para a imunização do SUS
Os especialistas ressaltam dois pontos considerados mais problemáticos na proposta:
Permissão dada ao setor privado para comprar vacinas sem aval da Anvisa, indispensável para garantir eficácia, qualidade e segurança do medicamento
Doses não aprovadas pela agência reguladora não poderão ser usadas na vacinação gratuita, promovida pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
Com isso, acreditam os especialistas, o projeto de lei também não vai facilitar e nem acelerar a campanha de vacinação contra Covid-19 no Brasil
"Sem a autorização de uso emergencial ou registro no Brasil, qual a utilidade dessas vacinas para o SUS? Os estados e municípios não poderão usar essas doses. Isso será uma brecha para as empresas entrarem com judicialização para aplicaram 100% das doses nos funcionários", analisa Dourado.
"O projeto é inútil. Não são doses que vão ajudar a aumentar a oferta no Brasil. São doses que o governo se recusou a usar", diz Thomas Conti.
Com isso, o projeto de lei também não vai facilitar e nem acelerar a campanha de vacinação contra Covid-19 no Brasil.
“Nas condições apresentadas no projeto, não vejo nenhum tipo de benefício que o Brasil poderia ter. É possível pensar projetos que o setor privado, de fato, ajudaria. Seja trazer vacinas, o que é muito difícil hoje, ou aumentar a velocidade da vacinação, que é mais fácil. Mas o PL não atua nesse sentido”, afirma Conti.
'Estratégia política para empresários'
Para Dourado, o principal interesse do lobby dos empresários com o PL 948/21 é a compra de vacinas que ainda não foram autorizadas pela Anvisa, uma vez que grandes laboratórios já aprovados no Brasil, como AstraZeneca e Pfizer, já afirmaram que não pretendem vender neste momento para o setor privado.
Em janeiro, por exemplo, após o presidente Jair Bolsonaro dizer que o governo apoiava a aquisição de 33 milhões de doses da AstraZeneca/Oxford por empresas, os laboratórios esclareceram que a prioridade é vender para os governos e para a Organização Mundial da Saúde (OMS).
"Percebemos que esse projeto de lei é uma estratégia política para favorecer empresários, que estão loucos para reabrirem suas empresas com a propaganda de 'aqui estão todos vacinados'", afirma Dourado.
Do ponto de vista da saúde pública, dispensar o aval da Anvisa é um risco muito grande, analisa Vecina. “Se a Anvisa não aprovou é porque a vacina não tinha condições esperadas para ser aprovada”.
Ele cita como exemplo a negativa da agência em certificar a vacina Covaxin. “Veja o que aconteceu na Índia. A fábrica não passou na inspeção. Uma fábrica que não passa em inspeção produz uma vacina que não é boa, não tem segurança. Quem comprar uma vacina da Bharat Biotech está comprando uma vacina que provavelmente pode ter problema de esterilização, por exemplo", diz.
Em janeiro, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) enviou uma delegação à Índia para negociar com a Bharat Biotech a possível compra de milhões de doses do imunizante para serem comercializados por clínicas privadas no Brasil. A vacina indiana ainda não tem comprovação de eficácia publicada em revistas científicas.
No final de março, a Anvisa negou a certificação de boas práticas a Bharat Biotech. Entre os problemas apontados estão questões sanitárias, de controle de qualidade e de segurança na fabricação da Covaxin. Sem o aval, a vacina não pode ser adquirida pelo Ministério da Saúde para ser utilizada no SUS.
"Uma coisa são os empresários querendo comprar vacina, outra coisa é o Congresso aprovar uma lei que não passa pela Anvisa (…) o Congresso está assumindo um risco pelo qual ele não poderá responder. A resposta por esse risco tinha que ser dada pela Anvisa. É um desastre”, analisa Vecina.
Com a aprovação do PL 948/21, a Covaxin poderia ser usada pelos empresários, mesmo sem o respaldo científico que garante a segurança e qualidade da vacina. "O interesse não é a saúde, é econômico", diz Dourado.
Concorrente para a vacinação pública
O infectologista Marcelo Otsuka, vice-presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), afirma que o projeto de lei, se aprovado, poderá ser mais um obstáculo do governo brasileiro em adquirir vacinas contra a Covid-19 para a população.
"É importante entender que os laboratórios em geral não vendem para empresas particulares, a venda hoje é restritas aos governos porque é uma necessidade do mundo inteiro", diz Otsuka.
O infectologista afirma que, uma vez que os laboratórios negociam apenas com os governos, o governo brasileiro provavelmente terá que intermediar as negociações entre as farmacêuticas e o setor privado.
"Ou seja, ao invés de o governo intermediar para a compra de vacinas para a população, vai intermediar para empresas particulares. Isso gera um conflito em relação à prioridades", afirma o médico.
Para o infectologista, o PL cria um concorrente para as vacinas públicas que seriam adquiridas pelo SUS. "Eu particularmente não acho de bom tom isso. Na verdade, se está criando um novo concorrente para a vacina que daríamos para o povo".
Inconstitucional
O médico e advogado sanitarista Dourado, que classifica o PL 948/21 como "vergonhoso e inconstitucional", explica que a proposta fere o artigo 200 da Constituição Federal. O trecho aponta ser atribuição única e exclusiva do sistema de saúde brasileiro atestar a segurança e qualidade de medicamentos.
"Ao ignorar e isolar a Anvisa, estaremos passando a autoridade de regulação dos nossos medicamentos para agências internacionais", explica Dourado.
O especialista dá como exemplo o caso da vacina Sputnik V, do Instituto Gamaleia, da Rússia. O imunizante ainda não foi liberado pela Anvisa, mas já está sendo produzido no Brasil pela farmacêutica União Química, que garante utilizar os mesmos insumos que a fabricante russa.
"Acontece que utilizar os mesmos insumos na fabricação de uma vacina não significa dizer que é a mesma vacina. Por isso precisamos do aval da Anvisa e não apenas do aval da agência reguladora de outro país", afirma o médico e advogado.
"Com o PL 948/21 , os empresários conseguiriam já aplicar a vacina neste momento, ainda sem o aval da Anvisa", diz Dourado.
Apesar de estarem em contato desde janeiro com a agência reguladora brasileira, a União Química ainda não apresentou todos os dados requeridos pela Anvisa para avaliar segurança e qualidade da vacina. O laboratório tem até 16 de maio para apresentar a documentação complementar, data em que termina o prazo de 120 dias para cumprimento de exigências.