Por Eduardo Campos Pinheiro
Vivemos um momento sem precedentes na história moderna, fruto amargo de uma crise sanitária com graves desdobramentos sociais em todo o mundo. Mais de um terço da humanidade está confinado.
Enquanto isso, aqui no Brasil a ameaça à saúde pública está levando governos estaduais e municipais a restringirem liberdades individuais fundamentais num grau nunca visto desde a redemocratização ocorrida em 1985, e a disputa político ideológica ganhando contornos nada republicanos. Ventos autocráticos sopram cada dia mais fortes.
Como se fosse pouco, o estado de calamidade pública decretado pelo Congresso Nacional estimula legisladores estaduais a compelirem seus governos estaduais no sentido de adotarem medidas relacionadas ao trânsito em absoluto desrespeito à Constituição Federal.
A estes governadores cabe atenção e cautela.
O uso da pandemia do coronavírus como justificativa razoável para legitimar decisões políticas que desrespeitam a supremacia da Constituição da República são perigosos alertas da erosão do Estado Democrático de Direito.
Todos os Entes Políticos da Federação são servos do texto constitucional, com atuações autônomas, onde um não pode usurpar do outro, sua competência constitucional.
Para evitar o conflito de normas, a Constituição Federal definiu o sistema de repartição de competências legislativas, demarcando as áreas onde cada Ente Federado poderá legislar. E, nesse sentido, o inciso XI do art. 22 da Constituição determinou que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte. Não se trata aqui de hierarquia de leis, até porque incorre em lamentável equívoco quem afirma tal existência, mas, sim, em supremacia da Constituição da República sobre a Constituição do Estado.
Num exemplo recente desta erosão democrática, um deputado estadual de Rondônia indica ao Detran de seu estado que este dispense da vistoria veicular os proprietários de veículos, sob a alegação de que a vistoria causa transtornos.
Este legislador e seu Governador precisam compreender que, além da falta de competência legal para legislar sobre o tema, temos que:
1. A vistoria veicular não é uma opção do Estado ou do seu Órgão Executivode Trânsito. É uma obrigação, prevista no inciso III do art. 22 da Lei 9.503,de 23 de setembro de 1998, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro.
2. A vistoria veicular não é um transtorno aos proprietários de veículos, é uma medida que visa garantir a autenticidade da identificação do veículo e da sua documentação, a legitimidade da propriedade e a conformidade dos equipamentos obrigatórios e de segurança.
3. A vistoria veicular é uma das medidas mais eficazes no combate ao crime organizado de roubo, interceptação e adulteração dos sinais identificadores de veículos.
4. A vistoria veicular é o único instante em que o Estado tem a oportunidadede verificar a conformidade dos veículos, impedindo que veículos sem as mínimas condições de segurança circulem pelas vias públicas.
5. Com a edição da Deliberação nº 185/2020 do Conselho Nacional deTrânsito (CONTRAN), o prazo até então vigente de 30 dias para que os proprietários de veículos adotassem as providências necessárias à efetivação da transferência de propriedade foi interrompido por tempo indeterminado. Qual o transtorno então?
Num momento em que todos acreditam que vidas só serão salvas por respiradores, é preciso lembrar que a vistoria veicular também salva vidas. É serviço essencial,sem o qual coloca em perigo (segurança) toda a população.