Os crimes de assédio moral e sexual figuram como uma das maiores violações cometidas no Brasil. Em Rondônia, a violação se somou a registros que já faziam do estado um recordista em violência contra mulheres, crianças, adolescentes e feminicídio. Diante desse drama social que assola o solo rondoniense, as vítimas apresentam estado de saúde deteriorado por uma violação que denigre a identidade humana. Na maioria dos registros, os assediantes costumam ocupar cargos de destaque em empresas privadas e órgãos públicos.
Na reportagem “Assédio: Liberdade é Denunciar”, o jornalista Emerson Barbosa traz a denúncia de três servidoras que, cansadas dos abusos por parte do chefe, buscaram a justiça. O cenário para os crimes? Um órgão público que deveria zelar pela saúde mental dos cidadãos. Era nesse ambiente que as vítimas viviam vulneráveis e sob a cortina do medo.
A reportagem entrevistou especialistas que atuam no combate aos crimes em Rondônia. No Ministério Público Estadual, a resposta da justiça foi considerada positiva, em detrimento do trabalho que as pastas realizam para combater os crimes envolvendo mulheres. “Importante para que outras vítimas sejam encorajadas a denunciar os fatos que costumam ficar velados.”
No cenário das humilhações, vítimas com o estado emocional devastado. O local que deveria ser de harmonia transformou-se em um pesadelo na vida de três servidoras. “Cleibson” era hostil e ríspido, especialmente com mulheres. Tinha tom autoritário, o que não acontecia com o sexo masculino”, enfatiza.
Imagem: Fabiano Coutinho – News Rondônia
Os feitos destrutivos dos atos começaram a interferir no corpo das servidoras. O organismo respondeu: paladar seco, mãos trêmulas, palpitações cardíacas, pânico e até o início de depressão. “Às vezes, nas reuniões, Cleibson se exaltava, elevava o tom de voz, batia na mesa, sentia medo, assustada, trêmula”, relata uma segunda vítima.
Outra servidora, vítima das perseguições, pontua as ofensas contra ela. A jovem recorda das palavras nada amistosas, dos olhares ameaçadores, das injúrias por parte do servidor. Nada tinha horário e ocorriam até por telefone. “O chefe proferia ofensas com palavras de baixo calão, ameaças de demissões com o objetivo de oprimir, gritos pessoalmente e por telefone. E até mesmo mensagens fora do horário de trabalho.”
Imagem: Fabiano Coutinho – News Rondônia
O corpo sentiu os efeitos daquela tortura psicológica, das humilhações explícitas. Porém, era quando as portas fechavam que o ambiente tenebroso de trabalho revelava sua potencialidade destrutiva. “Desenvolvi crises fortes, características de pânico e ansiedade, com taquicardia, principalmente em dias de reuniões plenárias, pois nesses dias ocorriam as piores humilhações e ameaças de demissões”, relembra.
Trecho da Ação Ordinária de Nº 0000843-35.2023.5.14.0004 traz uma gravação feita por uma das servidoras. Nela, o presidente do CRP aparece ‘revitimizando’ as vítimas. Usando do deboche, ele explica como elas poderiam atingi-lo – se o denunciassem. “Como é que vocês vão falar de mim? […] O André era bom, batia na mesa, tinha hora que nós escutávamos lá de fora. Nós ficávamos só lá perto do banheiro, ouvindo as histórias.”
Em outra passagem, o juiz narra os assédios detalhando as maneiras usadas pelo réu para ferir o psicológico das servidoras. “Havia constante mudança de funções das servidoras, de forma maliciosa e para oprimir, que existia sobrecarga de trabalho que resultava em significativo desgaste emocional e psicológico, exacerbado pelo comportamento do chefe. O Sr. Cleibson A. que as ofensas de baixo calão eram proferidas a todas as reclamantes.”
De acordo com uma das vítimas, com o passar do tempo as denúncias ganharam intensidade. No trecho da sentença, uma testemunha lotada em Rio Branco, Acre, onde o CRP-24 também tem jurisdição, confirma as agressões psicológicas sofridas pelas servidoras. Ela reafirma que, na época, os comissionados (cargos de confiança) foram todos exonerados. Que o presidente “Cleibson” do CRP-RO/AC chegou a ameaçá-la com um Processo Administrativo Disciplinar (PAD). “[…] Que viu vários colegas adoecendo por causa da pressão; que havia metas difíceis de atingir, que os resultados nunca eram considerados bons.”
Os depoimentos são de três servidoras, que não terão seus nomes divulgados na reportagem, apesar de expostos no inquérito, que correu sem segredo de justiça. No momento de desespero, as jovens uniram-se para pôr fim às práticas de assédio moral que vinham sofrendo dentro do Conselho Regional de Psicologia da 24ª Região RO/AC, com sede em Porto Velho. As provas das violências contra as profissionais foram decisivas para o veredito do juiz Luciano Henrique da Silva, da Justiça do Trabalho Tribunal Regional do Trabalho da 14ª RO/AC, que condenou o CRP-24 Região RO/AC.
Na sentença, proferida no dia 14 de dezembro de 2023, o magistrado expõe a condenação em desfavor da autarquia pelos crimes de: “Responsabilidade Civil do Empregador. Indenização por Danos Morais. Assédio Moral no Trabalho. Ofensa à Honra, à Imagem e à Dignidade da Trabalhadora Configurada”. O TRT-RO/AC, acatando em parte as denúncias, obrigou o CRP-RO da 24ª Região a indenizar as vítimas em R$ 23.562,00. “O relevante dessa história não se trata do valor, mas da sobrevivência das vítimas que conseguiram se livrar e denunciar uma pessoa que tinha por direito tratar a todas bem, tendo em vista ser o cabeça de uma instituição, com fins de restabelecer a parte mental dos indivíduos.”
No processo instaurado na 4ª Vara do Trabalho, o psicólogo Cleibson A. N. T. se defendeu e negou as acusações, afirmando: “Os fatos alegados pelas autoras são falaciosos e de má-fé, que jamais houve nenhuma perseguição do reclamado ou de seus superiores hierárquicos em relação às reclamantes, sempre havendo tratamento profissional e respeitoso”, narra o magistrado no processo.
Na época do ocorrido, a repercussão do caso rendeu uma enxurrada de críticas contra o CRP24, principalmente dos profissionais da psicologia. Além disso, a morosidade dos representantes para emitir uma retratação pública contribuiu para indignar a classe, que enxergou mais uma exposição das vítimas. “Estranho também a sentença de 14/12/2023 e só depois de repercussão negativa na mídia o Conselho se manifesta”, escreveu uma profissional, cuja identidade, apesar de exposta nas redes sociais, será mantida em sigilo pela reportagem.
Em nota, o CRP/RO-AC da 24ª Região defendeu os “valores da instituição”, mas evitou tocar no caso e prestar ‘sororidade’ com as vítimas, ainda que mantendo um colegiado formado praticamente por mulheres. No Acre, o grupo ‘Coletivo Mais Psicologia’ lançou uma nota repudiando as ações cometidas pelo presidente. “Nós, psicólogas e psicólogos do Acre, indignadas(os) com o assédio moral praticado contra servidoras no exercício de suas funções, repudiamos o ocorrido no ambiente corporativo do Conselho Regional de Psicologia da 24ª Região (CRP-24). Indigna-nos saber que quem deveria estar à frente das ações voltadas à promoção do desenvolvimento da categoria, que tradicionalmente luta pelos direitos de todos os seres humanos e promoção à saúde mental, tenha atitudes que não condizem com o que preconiza o Código de Ética da psicologia.”
O resultado do veredito obteve outro desfecho após a decisão judicial. No dia 26 de janeiro de 2024, um conselho gestor foi instaurado decidindo pelo afastamento do dirigente. Mas o desligamento só ocorreu pela pressão dos próprios psicólogos após o caso chegar na imprensa. Com a manchete: “TRT-RO acata denúncia de ex-servidoras e condena o Conselho de Psicologia por crimes de assédio“, o jornal eletrônico News Rondônia trouxe a denúncia que culminou na saída do servidor.
Imagem: Fabiano Coutinho
Portando a certeza da impunidade como garantia prévia, o ex-gestor tentou ser reintegrado. Em outra denúncia, a reportagem detalhou a presença de Cleibson A. N. T. em uma conferência promovida pelo Conselho para esclarecimentos acerca de (assédio moral no ambiente de trabalho). Nenhum problema se o servidor não fosse apresentado como parte integrante do conselho, do qual foi destituído. Na época, a reportagem procurou a Secretaria Estadual Executiva do Conselho Estadual de Saúde/RO para esclarecer a presença de Cleibson na lista de servidores do Conselho Estadual de Saúde [CES]. Porém, não houve resposta. Por meio de documentos, a reportagem descobriu que, após a exposição do caso, o órgão tratou de suspender o processo que liberava diárias ao “servidor”, como se ele ainda fosse integrado ao conselho de saúde.
O caso das servidoras do CRP-24-RO/AC pode fortalecer outras vítimas que estejam passando pelo mesmo dilema. Além disso, não são apenas crimes de natureza moral que cercam o estado. Aqui, os crimes, em particular envolvendo mulheres, são enxergados a partir da perspectiva histórico-cultural. “Vemos agentes enxergando a violência contra a mulher como algo normal, até corriqueiro”, pontua a promotora de Justiça Joice Gushy Mota Azevedo, durante uma reportagem que respondia sobre os crimes de violência doméstica e feminicídio.
Levantamento mostra que, até maio de 2024, a Justiça do Trabalho julgou mais de 400 mil casos envolvendo assédio moral e sexual no Brasil. É um número três vezes maior que o verificado em 2022, durante a pandemia da Covid. O resultado do detalhamento indicou que cerca de 60% dos registros levados para a Corte os acusados eram chefes. O restante, 40% se declaram liderados e 18% seriam apenas colegas que exerciam a mesma função. [Fonte: MPT].
Imagem: Fabiano Coutinho
Já um estudo elaborado pela prestadora de serviço KPMG trouxe um diagnóstico para entender o raio-X dos registros de assédio no Brasil. Do estudo, 42% pontuaram-se na categoria moral ou psicológico. O silêncio das vítimas é algo que perpetua diante das intimidações: só 20% denunciam. Por regiões, o Sudeste segue na liderança, com pouco mais de 76% dos casos. A Região Norte com 2,9%. Já Rondônia, a média em 2023 foi de 0,21% registros denunciados.
Igor Souza – procurdor do MPT-RO-AC
Para o procurador do Trabalho Igor Souza Gonçalves, que também assume como vice-gerente Nacional de Empregabilidade LGBTQIA+ e a coordenadoria de Combate à Discriminação na PRT da 14ª Região RO/AC, é preciso estar atento às maneiras de como as pessoas atuam no ambiente de trabalho. O modo de lidar umas com as outras, endossando sempre a prática do respeito.
Aqui, o Ministério Público Estadual [MP-RO] não descarta que os crimes envolvendo as práticas de assédio (moral e sexual) coloquem Rondônia diante da trincheira que já apresenta a (violência contra as mulheres, crianças e adolescentes e feminicídio) no ranking Brasil.
foto: Fabiano Coutinho
“Esse cenário precisa ser urgentemente modificado com a implementação de iniciativas para que se construa uma nova mentalidade de visão da mulher em nossa sociedade”, pondera.
Distante alguns metros, o Ministério Público Estadual [MP-RO] e o Ministério Público do Trabalho [MPT -RO/AC] unem-se para combater os crimes que envolvem o assédio nas suas mais diversas pluralidades.
Nessa luta, as instituições funcionam como porta-vozes de um povo que clama para que seus direitos sejam respeitados. Ao longo dos anos, as instituições têm buscado se sentar com a sociedade civil organizada. A construção de ‘pontes’ que conduzam ao impedimento dos crimes coloca esses órgãos à frente de um desafio a ser ultrapassado.
A incidência de registros aqui em Rondônia funciona como um termômetro para que as pessoas estejam atentas aos fatos ao redor delas, principalmente no ambiente de trabalho, onde os crimes, além do assédio moral, podem revelar casos que pontuam os crimes sexuais.
MP-RO – foto: Fabiano Coutinho
No conjunto dos conhecimentos práticos, o MP defende as vítimas no tocante das violências praticadas em desfavor dos gêneros, inclusive aplaude a responsabilização criminal, enxergando uma vitória e um posicionamento de cobrança, tendo em vista que muitos dos episódios de assédio sequer chegam ao conhecimento da justiça, o que muitas vezes acaba prevalecendo a certeza da impunidade.
Promotora de Justiça Joice Gushy Mota Azevedo | foto: Fabiano Coutinho
A promotora de Justiça Joice Gushy Mota Azevedo tem representado atualmente a pasta de Feminicídio e Violência Doméstica. Nesse campo, o assédio moral também complementa a lista dos crimes, principalmente quando as vítimas envolvem mulheres. No júri, ela tem sido implacável na tentativa de colocar os violadores atrás das grades. Mas, segundo a promotora, diante do cenário de crimes que a mulher rondoniense foi inserida, as políticas públicas no tocante das ações precisam se aproximar das vítimas. “Paralelamente, têm que ser criadas ações preventivas de conscientização, de valorização da mulher, de respeito ao espaço da mulher, seja ele no ambiente de trabalho ou no ambiente familiar. As intervenções psicológicas”, esclarece.
Para os órgãos, é necessário estabelecer, dentro das políticas de gênero, conexões que envolvam a comunidade em geral. Destacar que as práticas delituosas, sejam elas cometidas no ambiente de trabalho, nos crimes de violência doméstica e familiar contra a criança e ao adolescente e feminicídio, deixem o “ímã” que os pontua como cultural, algo emergido da truculência machista estabelecida no processo do colonialismo nesta parte do estado. Quanto às denúncias? É essencial enaltecer as queixas e com elas pontuar a confiança das vítimas ao expor diante da justiça os crimes e, principalmente, os seus perseguidores.
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