A linguagem dos seringais está intimamente ligada aos modos de vida do seringueiro. A vida na floresta proporciona uma importante estrutura sócio-linguístico-cultural, composta por uma vasta rede de unidades lexicais que representa em sua forma tradicional as peculiaridades do discurso do homem da floresta.
O marcador territorial linguístico, especificado pelo geógrafo Almeida Silva é caracterizado por ele – dentre outras relevantes características – como uma condição sine qua non que o divíduo carrega, traduzinho sua internalidade e exterioridade pessoal e territorial, porque segundo o autor onde quer que esse divíduo caminhe estará conduzindo esse marcador como algo inerente, como pertencimento.
Podemos observar que as unidades lexicais que preenchem o vocabulário linguístico dos seringais não são fenômenos isolados e separados do universo extralinguístico, visto que a língua é um fator social inseparável da vida e da cultura de uma comunidade falante.
O seringueiro, pois, carrega em si uma vasta rede de conhecimentos originados de um complexo imaginário imortalizado na floresta. Seu acervo lexical flui naturalmente através de uma língua imbricada em sua cotidianidade. São palavras ou vocábulos que expressam os conhecimentos adquiridos no seu espaço vivido.

Ao discorrer sobre o fenômeno da linguagem o filósofo Martin Heidegger nos informa que o fundamento ontológico-existencial da linguagem é o discurso, pois segundo ele, o discurso é um existencial originário da abertura, constituído primordialmente pelo ser-no-mundo, ele também deve possuir, em sua essência, um modo de ser especificamente mundano. Para o mesmo autor, a linguagem pode ser estilhaçada em coisas-palavras simplesmente dadas, porque existencialmente, o discurso é linguagem porque aquele ente possui o modo de ser-lançado-no-mundo, dependente de um mundo.
Mencionaremos aqui o depoimento do soldado da borracha, Manoel Gomes de Oliveira – falecido no ano de 2018 – na época em que ele ainda trabalhava na extração de seringa, o seu filho ficou muito doente. Em sua narrativa ele pede ajuda a um compadre seu que era muito conhecedor da medicina popular. Esse sabedor chamava-se João Amaral e era conhecido nos seringais dos rios Mamu e Abunã como João “Pretinho”. Ele possuía uma vida dedicada a socorrer as pessoas doentes de toda Região da Ponta do Abunã e demais comunidades fronteiriças.
Observemos a narrativa do seringueiro Manoel Gomes sobre o atendimento do seu filho pelo sabedor João Amaral:
“Quando o menino ficou doente eu peguei e levei para o João pretinho rezar, dito o menino que tinha pneumonia que me dava trabalho quando estava doente. Um dia eu cheguei com o menino, ele me perguntou o que a gente estava fazendo lá, eu falei que nós tínhamos ido lá passear. Deitei o menino numa rede e fiquei balançando, quando me dei fé, o menino estava morrendo, aí eu gritei para o compadre João que se achegasse, pois, o menino estava morrendo. Eli correu, pegou o menino e levou para um quarto e me perguntou se eu tinha copaíba em casa, eu falei que sim, então ele me mandou ir buscar um pouco, para ele começar o trabalho. Quando cheguei com a copaíba, entreguei para ele, que pegou o gergelim, pilou um pouco e misturou com a copaíba. Passou num corpo do menino da cabeça ao pé. Depois pediu a primeira camisa que o menino vestiu. Então fui em casa buscar, ele pegou a camisa e uma bacia com água. Tocou fogo na camisa e colocou dentro da bacia com água, porque se a cinza da camisa fosse para o fundo, o menino morria, mas se ficasse sobre a água, ele não morria. A cinza ficou por cima, então ele disse que o menino estava com anemia no sangue, que podia levar no médico, mas que daquela doença o menino não morreria. Ele me disse que eu tinha que ficar sete dias na casa dele com o menino, para ele poder se recuperar. No sétimo dia ele me liberou, aí eu fui para Rio Branco com o menino. Cheguei lá o médico me falou que o menino estava mesmo com anemia. Então o doutor Moura passou o remédio que curou, mas o menino não cresceu muito”.
No depoimento do soldado da borracha, podemos observar que através de sua linguagem peculiar, as comunidades tradicionais possuem uma histórica sabedoria popular sobre a utilização de ervas medicinais nos variados casos de doenças surgidas nos seringais. Atualmente, essas ervas medicinais foram substituídas por remédios alopáticos, fabricados por grandes indústrias farmacêuticas que mantém e domina o uso em alto custo desses produtos industrializados.
Manoel Gomes demonstra em suas narrativas, através de uma linguagem que representa os seus saberes e fazeres, que o ente em sua existência espacial, inicialmente valorizou o silêncio como forma de aprendizagem, para que posteriormente, através de sua fala, pudesse valorizar a sua forma de ser.
O marcador territorial linguístico, como um marcador estruturante, assim caracterizado por Almeida Silva, nos traz a relevante oportunidade de demonstrar as singularidades do ente, vivenciadas nas espacialidades e temporalidades, e reproduzidas através de sua fala como resultado de suas experiências de vida.
A seguir o soldado da borracha relata em mais uma narrativa, um pouco do cotidiano vivido em sua colocação, onde demonstra um vocabulário rico de conteúdos peculiares entrelaçados aos modos de vida dos seringais. Através deste importante marcador linguístico é possível detectar semanticamente a utilização do léxico do seringueiro amazônida, tais como: Estrada de seringa, tigela, paneiro, buião, balde e demais palavras – anteriormente conceituadas em outros marcadores – utilizadas no seu espaço de ação. Vejamos:
“O serviço do seringal começava cedo, às quatro horas da madrugada. Eu me levantava, fazia café, pegava minhas facas de seringa e saia para entrar na mata para cortar a seringa. Era uma estrada com duzentas árvores de seringa, tinha árvore que dava mais de cinco tigelas de seringa. Fechava o corte umas dez horas da manhã. Chegava em casa cansado, ainda tinha que fazer comida. Comia, pegava o paneiro, um saco de seringa encauchado e um balde, que era para colocar o leite, uma paletinha para limpar as tigelas. Quando o balde estava cheio, eu botava no saco e amarrava, botava nas costas e me mandava pegar o resto do leite de seringa. Quando chegava em casa ia para o defumador, tinha uma baciona para colocar o leite e já trazia um cipó que era para aquecer o leite, para ficar grosso. Tocava fogo no buião que era para defumar o leite. Era cavado um metro, tinha que fazer um suspiro para colocar o fogo e uma boca em cima para sair a fumaça e defumar o leite. As madeiras eram carapanaúba, breu, coco babaçu. Essas eram as melhores para defumar a seringa. Eu amarrava uma corda na linha da defumadeira; um gancho para colocar um cavador da borracha, após cinco dias eu ferrava a borracha, colocava minha marca, então eu ia trabalhar para tirar borracha. O patrão mandava buscar a borracha de quinze em quinze dias. O tropeiro vinha buscar a borracha na minha casa e levava para o barracão que ficava na beira do rio Abunã”.
Apesar das dificuldades atreladas à época do processo de extração, Manoel em sua narrativa demonstrava possuir satisfação na sua relação com o seringal. As lembranças de sua terra natal e do percurso que ele realizou de Fortaleza à Manaus, continuavam presentes no seu rico imaginário. O seu novo espaço amazônico – vivido na colocação, no tapiri e nas estradas de seringa – foi aos poucos sendo transformado, e transformando os modos de vida de Manoel.