A seringueira tem mãe. Segundo os seringueiros, todos os passos que eles fazem na estrada de seringa, ela se pões a observar. Nenhum seringueiro poderá aprofundar o caule da árvore com a sua faca, sob pena de sofrer punições severas da mãe da seringueira. A mitologia amazônica é parte indissolúvel do ser dos entes seringueiros, ela está presente na cotidianidade das colocações, na organização das espacialidades, e em suas representações simbólicas.
O seringueiro em sua ampla visão mitológica e cosmogônica, imbrica-se tão fortemente à natureza exuberante, que esse mundo do qual ele vive e sente, transforma-se numa natural intimidade oferecida ao ser de sua existência. Gaston Bachelard nos informa que a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.
O universo mítico do seringueiro vive no seu profundo imaginário, convivendo em suas cotidianidades, e aguçando as espiritualidades cosmogônicas do seu ser. A poética de Gaston Bachelard instiga no espaço vivido do homem à fenomenologia da imaginação, pois, segundo ele o espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. É vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação.
Segundo o pesquisador João de Jesus Paes Loureiro, na Amazônia as pessoas ainda veem seus deuses, convivem com seus mitos, personificam suas ideias e as coisas que admiram. Para o mesmo autor Na vida Amazônica a mitologia reaparece como a linguagem própria da fábula que flui como produto de uma faculdade natural, levada pelos sentidos, pela imaginação e pela descoberta das coisas.
Nesse procedimento de uma verdadeira metafísica poética o impossível torna-se possível, o incrível apresenta-se crível, o sobrenatural resulta em natural. Quer dizer, um estado poético que evola do devaneio de livre expansão do imaginário. A linguagem mítico-poética traduz dessa forma um pertencimento do imaginário amazônico incorporado no espaço de ação dos povos da floresta e que simbolicamente se alimenta das veias abertas da mãe da seringueira.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.