Por Marquelino Santana
É na exaltação dos sentidos – entranhados de forma prodigiosa à natureza – que o homem estabelece uma radiante relação com a Mãe terra, buscando sempre vivificar um sentimento de paz e harmonia com a devoção e a espiritualidade do lugar.
No espaço e tempo a coletividade passa a fazer parte do lugar e a conhecê-lo como fonte inesgotável de pertencimento. Para Lívia de Oliveira conhecer um lugar é desenvolver um sentimento topofílico e topofóbico, sem se importar se é um local natural ou construído, pois a pessoa se liga ao lugar quando na cotidianidade se adquire um significado mais profundo e mais íntimo.
Na desmesurada profundeza dessa intimidade com o lugar, o homem ribeirinho torna-se indissociável do seu espaço de ação, e nessa encantatória vivência surge de forma imaculada e transcendental, o divinal amor pela casa. É na casa onde brotam os mais estetizantes devaneios, e onde o homem adormece na sua original imaterialidade da alma.
Gaston Bachelard nos faz meditar ao dizer que para um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do espaço interior, a casa é, evidentemente, um ser privilegiado, e isso, é claro, desde que, segundo ele, consideremos ao mesmo tempo em sua unidade e em sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental.
Na axiologia desses valores fundamentais da casa, Bachelard nos ensina de que a casa da lembrança se torna psicologicamente complexa, e a seus abrigos de solidão associam-se o quarto, e a sala, por exemplo. Para o referido autor, a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. No entanto, nos dedicaremos aqui à realizarmos uma sucinta reflexão sobre a fenomenologia da cozinha beiradeira.
A cozinha continua entranhada à casa, assim como o lar, continua imbricado à cozinha. É nela onde a família ao entorno da mesa, realiza as suas orações, agradece ao criador pelo pão de cada dia e reestabelece as relações da pureza de sentimento com os seus entes amados. A cozinha é o centro dialógico da casa, é o espaço divinizado da sua dimensão coletiva, e é o local de paralelo entre os momentos de alegria e de dor.
Entre a mesa e o fogão brotam os imaginários de uma memória coletiva, brotam as celebrações da exaltação desmesurada dos sentidos e brotam os devaneios ontológicos das encantarias florestais. Ao falar sobre as condições rurais do mundo antigo, o escritor Otto Friedrich Bollnow, nos informa que num sentido bem literal, é o fogão que outrora já se localizava espacialmente no centro da casa e ainda tinha um significado diretamente sagrado, que era o fogão como altar. Para o mesmo autor, fogão e mesa, eram, dessa forma símbolos do centro comum da família.
Edward Relph nos relata que o sentido de interioridade se refere à familiaridade, conhecendo o lugar de dentro para fora, diferente como faz um turista ou um observador. Para Relph estar em casa, é, para muitas pessoas, a forma mais intensa de interioridade. O mesmo autor, ressalta ainda que o lar, é onde as raízes são mais profundas e mais fortes, onde se conhece e se é conhecido pelos outros, o onde se pertence, e ainda nos alerta ao dizer que a ausência de lar pode nos levar à saudade.
A família ribeirinha é um lar divinizado, é um eixo sublime do fecundíssimo útero do mundo, e jamais poderemos concordar que uma globalização reacionária e excludente, possa sem nenhuma noção de escrúpulo, dilacerar essas tradicionais relações de pertencimento entre a casa e a natureza, e consequentemente, com as suas concepções estigmatizadas, exterminem as peculiaridades da cozinha brasiviana.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.