Autor: Marquelino Santana
Ao deixar a sua embelecida Nueva Esperanza na Província Federico Román, Aymara buscou abrigo no seringal Yacune, almejando oferecer uma vida melhor aos seus filhos. Aymara havia sido abandonada pelo companheiro, e resolveu heroicamente caminhar com a família até a fronteira com o Brasil. Foi nesse exuberante seringal pandino que ela finalmente encontrou trabalho, alimento e estudo para as suas crianças.
Mais tarde a remanescente indígena – batizada com o nome da mesma etnia que a originou – resolveu cruzar a fronteira em busca de uma melhor educação para os filhos. Em território brasileiro, Aymara conseguiu matriculá-los, arrumou emprego e alugou um pequeno apartamento para dividir o pequeno espaço com as suas quatro crianças.
No sonhar de que “Todo ser humano tem direito a uma ordem social em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente declaração possam ser plenamente realizados”, conforme reza a Declaração Universal dos Direitos Humanos; segura de que “a nossa constituição federal não distingue nacionais de estrangeiros quanto ao gozo de direitos civis”; e ciente de que “quanto aos direitos fundamentais da pessoa humana, são garantidos aos estrangeiros direito a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade”; a guerreira de Nueva Esperanza, só não sabia do fatídico e cruel destino que a esperava.
Numa noite macabra e tenebrosa, a mulher pandina fora sequestrada, e ficou refém do aviltante facínora, sob o olhar desluzido e desolado da lua. Mesmo diante do seu visível estado de tortura e esmaecimento, Aymara conseguiu libertar-se das amarras do ódio e correr aproximadamente seis quilômetros gritando por ajuda no meio da mata. Mas a sua heroica resistência de querer rever os filhos seus, voltou a ser um pesadelo. Ela foi recapturada, arrebatada a lama, dominada pelo embrutecimento desumano, e condenada de forma exacerbada e degradante ao asfixiamento da morte.
Aymara fora vítima do descalabro malevolente, fora vítima do escárnio fúnebre e grotesco, fora vítima de uma sociedade paternalista conservadora e esdrúxula, fora vítima de uma fronteira gólgota e desprotegida, fora vítima da ignávia e mácula humana, forma vítima de um bisbórria fútil e delinquente, e fora vítima de uma segregação intolerante, tacanha, pérfida e ominosamente racista.
Diante de tanta indignação e repulsa, diante de tanta monstruosidade e nostalgia, e diante de tanta incúria e desregramento binacional, só restou a funesta Nueva Esperanza, receber lacrimosa em sua terra mátria: a migrante de papel e os órfãos da xenofobia.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina.