Autor: Marquelino Santana
Na ontológica alma ribeirinha e no benevolente lar da floresta brasileiro – boliviana, não há espaço para a pugnaz xenofobia fronteiriça. A tradicional e obstinada família amazônica não se rende a truculência do mundo tacanho, e não é subserviente a um Estado tecnocrata internacional.
A família brasiviana é por excelência, parte indissociável da mata, e nesse peculiar imbricamento, não há distanciamento ou aversão às diferentes diferenças, não há insolência e perniciosidade contra a vida, e não há obliteração aos tradicionais modos de vida do lugar.
Nesse simbólico e cosmogônico espaço de ação, os guardiães da floresta são divinalmente apropriados pela espiritualidade e toponímia de um lugar singular e plural, e possuídos por um exuberante panteão de significados de seus deuses mitológicos que sobrevivem transcendentalmente alojados no ser do ente de suas coletividades.
A floresta brasiviana do rio Mamu carrega em si um emaranhado de mistérios que são divinamente guardados no imaginário estetizante de seus entes. Neste exímio cenário da natureza encantadora há uma fonte inesgotável de saberes espirituais e mitológicos que nos fascina com seus devaneios poetizantes.
É na concatenação fascinante da noite com o imaculado remanso do rio que brotam os desejos do homem ribeirinho. No entanto, a vontade instigante do ser é vigilantemente controlada pelo poder do velho-da-canoa. Esta generosa figura mitológica brasiviana atua no exuberante silêncio da noite, é dotado de uma alma extremamente benévola e percorre o rio Mamu numa velha canoa feita de Itaúba.
Enquanto rema, ele viaja nos devaneios do homem ribeirinho, ingressa misteriosamente nos sonhos de cada um, analisa os desejos não concretizados durante o dia, atenta para os desejos pretendidos do dia vindouro e em seguida prioriza as vontades mais urgentes e necessárias à serem atendidas.
Com uma visão imaculadamente cosmopolita, o velho-da-canoa é considerado a alma da floresta. Em seu estado de profunda pureza, ele é o ensaio virtuoso da contemplação divinizada da natureza, e é durante seus trajetos noturnos que ele adormece no silêncio sublime da solidão, buscando no espaço e tempo a sua majestosa imensidão.
O velho-da-canoa viaja na intimidade do ente seringueiro, ele procura atender os desejos da vida ribeirinha, atender o que é de maior necessidade. Ele vive na imensidão da alma e na vastidão da relação do homem com a natureza, uma prova irrefutável do deslumbramento transcendental da imaterialidade da casa brasiviana.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/UNIR e pesquisador do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito da Universidade Estadual de Londrina – UEL.