Aluguei um apartamento parcialmente mobiliado, ato que a cada vez vou criando mais obstáculos, talvez porque a idade vai fazendo de nós pessoas desnecessariamente exigentes com coisas sem nenhum sentido. O que mais precisa um homem senão um teto para abrigar-se, uma cama para reclinar a cabeça e um bocado de pão e água para suster-se? Não foi precisa esse o conselho de Cristo? Mas eu falava do apartamento que aluguei e o que me atraiu é ser um local tranquilo, um bairro bem arborizado e por isso sombras nas calçadas que andarei nos dias quentes e frios.
Enquanto tento ajeitar minhas caixas de livros, embrulhos de roupas, louças, utensílios, móveis e quinquilharias de toda sorte, tenho a presença do dono, um senhor velho protegido atrás das muralhas de seu bigode, que insiste em listar com ênfase de comercial de tv as muitas benécias que adquiri com o direito de usar o apartamento. Só não me faz sentido o porquê ele insistir em destacar as qualidades de um imóvel depois de eu haver alugado por tempo razoável e não demonstrar nenhum traço de arrependimento. Da janela ele aponta entusiasmado para o mercado e a farmácia que ladeiam um posto de combustível, doutro lado – também sob a precisa mira de seu dedo – anuncia a presença da sorveteria e da praça da cidade que segundo ele “nas tardes de domingo fica cheia de moças bonitas” e recolhendo as mãos para os bolsos liquida a ideia: “Um homem jovem como o senhor arrumará rapidamente uma namorada bonita, vai ver!” Só consigo formular um pensamento: “Que puxa…”
Suas palavras perdem a tal ênfase comercial e assumem a seriedade de um documentário sobre Auschwitz. Eu o evito, fixo atenção em embrulhos de roupas porque já me preocupo em sair par comer algo no final da tarde e por isso nego-me a examinar como ele gostaria, o detalhe de cada coisa, minha indiferença vagamente o ofende. Para ele sou um estranho que ele lamenta no fundo de sua alma que vai morar em seu apartamento com suas coisas; um intruso que paga o direito de ser intruso, o mais antipático dos intrusos. Ele aponta uma mesinha de centro incomodíssima e brega. Tateia longamente o quadro em óleo sinistro e escuro que meterei num armário qualquer desprezando a pretensa beleza que ele vê. Pobre homem, talvez nunca tenha visto a vivacidade do amarelo que Van Gogh trouxe ao mundo, ou as paisagens de Monet. Uma pequena estante vertical com frente de vidro habitada por uma infinidade de cacarecos inúteis tento fazê-lo levar, sem sucesso. Há um simpático espelho quadrado que diariamente receberá a visita de minha cara e talvez presencie hábitos que me faça parecido com esse velho quase rouco.
Ele vai-se. Meu silencioso e solitário espanto é que este senhor não fez nenhuma menção ao que de maior valor tem seu imóvel; a vista para a praça que está repleta de belíssimas árvores que se lançam com enorme veemência para o alto num impulso de chama verde, estáticas, exáticas, explendendo em beleza! Sou um homem confuso e distraído; não sei se sonhei ou se sonhei que sonhei com crianças a brincar naquelas sombras. De qualquer modo recolho as roupas que usarei logo mais, posiciono a carteira e as chaves em fácil acesso e me dirijo a um revigorante banho, mas não sem antes ser lembrado com uma canelada, que agora tenho uma mesa de centro, no centro de meu reino.
Jefrson Sartori
Maio, 2018