Era a primeira década do ano 2000. Um velho seringueiro abriu o seu saco de encauchado, separou seus usuais instrumentos de trabalho, alojou num rústico Jamaxi de cipó que sempre pendurava às costas e foi percorrer os cotidianos varadouros do rio Mamu.
Enleado à mata e na sua costumeira divagação, era sempre tenaz e perseverante na árdua labuta que vivificava esperançosamente a pugnaz volúpia de seus maviosos modos de vida. A sua bravia tenacidade foi rompendo os últimos crepúsculos que insistia interromper a passagem prodigiosa da lua. Seu relógio mental despertou e o velho seringueiro depois de um operoso dia, finalmente se rendeu ao aconchego do seu imaculado tapiri.
No seu retorno para casa, algo sempre aprazível e harmonioso, uma voz eloquente ecoou vindo da beira do rio, fez com que os seus passos se estagnassem e ele se concentrasse para ouvir alguém falando ao longe: – Sua família precisa de você, mas nunca perda a sua boa alma!
O seringueiro correu em direção ao eco da voz, escondeu-se embaixo de uma grande sapoema e avistou o solitário velho da canoa apontando sentido ao seu tapiri. O ribeirinho correu desesperado, e enquanto corria mais uma vez escutou a voz do velho da canoa: – Nunca perda a boa alma!
Finalmente o velho seringueiro chega atônito ao seu tapiri e avista cerca de 12 a 15 homens armados de espingarda, provocando balbúrdia e gritando a bravatear. O ribeirinho logo percebeu que estava diante de uma organização campesina que queria tomar posse de suas terras, e procurou se acalmar e seguir as orientações do velho da canoa.
Os campesinos mais pareciam milicianos ou grupo paramilitares, e o intimaram a organizar seus pertences, e em poucas horas colocar no seu batelão, retornar ao Brasil e nunca mais voltar. Os invasores ainda se apoderaram de toda a sua safra de castanha, do seu comboio de burros e demais bens que o impediram de levar. Às três horas da manhã a família adentrou no batelão e tomou rumo ao Brasil.
Depois de navegarem duas horas nas águas do Mamu, a família seringueira começou a escutar fortes gritos de pedidos de socorro às margens daquele rio. Preocupado, o velho seringueiro ancorou o batelão, avistou uma pessoa deitada ao chão e foi prestar atendimento. Ao aproximar-se, avistou um corpo ensanguentado imóvel sobre o mato, chorando e implorando a Deus pela vida. Para surpresa do velho seringueiro, era exatamente um dos homens que apontou a arma em sua cabeça e o expulsou do seu seringal. O campesino havia se acidentado com a própria espingarda ao sair à noite para caçar. O tiro havia estraçalhado uma das suas pernas. Ao reconhecer que era o velho seringueiro que havia acabado de expulsá-lo de sua casa, o campesino pediu pelo amor de Deus que não o matasse.
Em silêncio o velho seringueiro juntamente com a família prestou socorro ao campesino boliviano, fez amarras de pano na sua perna, a mulher deu-lhe um xarope natural contra infecção, espalhou chá de ervas medicinais no ferimento, atou uma rede no batelão e o deitou, enquanto as crianças limpavam o sangue que escorria do corpo ensanguentado.
Ao sentir tamanha benevolência espiritual ao seu redor, o campesino não mais gritava de dor, passou a chorar e a pedir perdão por sua insensatez humana. No raiar do sol o batelão chega ao Porto Extrema e é ancorado às margens do rio Abunã. O velho seringueiro transporta o campesino nas costas por um bom tempo na estrada até que surge um pescador de moto e conclui o percurso até o Hospital Regional de Extrema. De lá o paciente foi imediatamente conduzido de ambulância até o pronto socorro de Rio Branco no Estado do Acre, onde foi submetido ao intenso tratamento. Recuperado, o paciente retornou à cidade de Riberalta no Departamento de Beni onde foi recebido com alegria pelos familiares.
Um estado de belicosidade condenou afrontosamente uma família a um cadafalso de infortúnio e infelicidade. Arrancaram-lhe com abrutamento o lugar, sem o lugar a vida da família seringueira se transformou num calabouço insolente e causticante.
Uma celeuma malevolente de grupos paramilitares fronteiriços, cravou uma ferida aberta à essência do ser ribeirinho e sem nenhuma comiseração ou brandura, defraudou, degredou e desterrou uma família extrativista oriunda do primeiro surto da borracha do seu autêntico e tradicional lugar.
Na ruina da demolição humana, a família desirmanou-se do seu habitat natural. No desnorteamento da vida, o lar estetizante se transformou em escárnio. Esmaecida, a família tombou exaurida e sem vivacidade, e hostilizada foi tomada pela miséria e penúria humana.
A perniciosidade humana com seu espírito belicoso foi visivelmente truculenta e xenófoba. A aversão estampada ao outro tornou-se um ato do mais escabroso mundo. A soberba da cobiça foi objeto de desonra, antipatia e beligerância, e o descalabro espoliante exauriu por completo a cotidianidade cultural de modos de vida seculares da Amazônia fronteiriça.
Mas ao tempo em que estava sendo condenada a sua substância ontológica, a família seringueira jamais abriu mão da sua briosa generosidade, jamais se deixou levar pela ação aviltante do ódio profundo e jamais deixou-se render à tenebrosidade pérfida da malevolência ominosa da vida.
Do outro lado da fronteira humana, o campesino que fora salvo pelo velho seringueiro, narrou sua história a família, que imediatamente ajoelhou-se e agradeceu a Deus por tamanha misericórdia cristã. Esta mesma família veio da Bolívia visitar o velho seringueiro, agradeceu divinamente por ter salvo a vida do filho, pediu perdão pelo ato de atrocidade e investiu de forma humilde e sensata no retorno da família ribeirinha às terras dos seringais do rio Mamu.
A família seringueira voltou a morar no seu tradicional lugar do Noroeste pandino boliviano e o bem viver retornou triunfante aos seus peculiares modos de vida. Na madrugada do dia vindouro, quase sem querer acreditar que estava de volta ao lar, o velho seringueiro levantou-se e foi banhar-se às margens do rio, quando ao longe avistou o mitológico velho da canoa meditando no remanso das águas, e mais uma vez a mesma voz eloquente voltou a ecoar de mata a dentro:
– Seja bem-vindo alma boa!
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.